ACTAS  
 
8/31/2016
Ser social-democrata hoje
 
Dep.Carlos Coelho

Vamos dar início à nossa sessão da tarde. "Ser social-democrata hoje” era o tema que ao longo de vários anos foi feito pelo Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa, quase sempre, com poucas exceções. O Prof. Dr. Miguel Poiares Maduro não é a primeira vez que está na Universidade de Verão. Em bom rigor é um dos nossos oradores mais requisitados e vão ver porquê. Já cá esteve seis vezes, esta é a sétima.

A primeira vez em 2007 para dar uma aula sobre Europa, o que tornou a fazer em 2013.

Em 2008 para animar um debate sobre valores - direitos e valores - que quem viveu ainda se recorda.

Em 2010 para fazer um jantar-conferência sobre ciência.

Em 2014 para fazer um frente a frente, um debate, com o Rui Tavares, do Livre, sobre se a direita e a esquerda ainda são barreiras que fazem sentido no mundo de hoje.

E o ano passado, juntamente com o Dr. Manuel Castro Almeida, para nos falar sobre o Portugal 2020, crescimento e emprego.

Portanto, é a sétima presença do Prof. Miguel Poiares Maduro, e agradeço-lhe muito o facto de, uma vez mais, ter aceite o nosso convite.

O nosso convidado de hoje tem como hobby o hedonismo em geral, mas em particular cinema, cozinhar e jogar futebol. A comida preferida é a que está constantemente a ser reinventada. O animal preferido é o cavalo. O livro que nos sugere é "Imperfect Alternatives”. O filme que nos sugere é "Mr. Smith Goes to Washington” e "Unforgiven”; e a qualidade que mais aprecia é a honestidade, qualidade, aliás, de que ele deu sobejas provas, quer no percurso europeu que desenvolveu com muito brilho e mérito, no Tribunal de Justiça da União Europeia, quer enquanto professor universitário, diretor num centro de reflexão em Florença, quer como ministro do último governo. O nosso convidado que foi galardoado, em 2010, com o prémio Gulbenkian Ciência.

Senhor Prof. Dr. Miguel Poiares Maduro, o palco é todo seu, e muito obrigado.

 
Miguel Poiares Maduro

Muito obrigado eu, pelo convite. Eu não tinha feito essas contas, que já é a sétima vez, mas é sempre um gosto enorme estar aqui. E frequentemente com temas novos, e é a primeira vez que eu venho aqui falar sobre o que significa ser social-democrata hoje. E devo dizer que foi uma oportunidade para mim, também, para refletir com mais profundidade, não apenas sobre aquilo que é ser social-democrata hoje.

Nós praticamos a social-democracia, digamos que intuitivamente. Temos uma perceção sobre aquilo que é ser social-democrata e ajustamos a nossa prática política a isso, mas raramente temos a oportunidade de nos afastarmos um bocadinho e pensarmos com mais profundidade sobre exatamente o que isso é, e procurar explicitar com maior clareza aquilo que significa a social-democracia hoje.

Eu vou procurar fazer isso convosco em três momentos fundamentais. O primeiro é refletindo sobre as origens da social-democracia, qual é a identidade histórica da social-democracia, enquanto doutrina política que, ao mesmo tempo, decorreu do socialismo e do próprio socialismo marxista, mas se diferenciou e se contrapôs a esse socialismo.

Em segundo lugar, partindo dessa identificação da identidade política e ideológica da social-democracia na sua origem, em que medida é que isso se refletiu na própria identidade política do PSD, do PPD, originalmente, e do PSD. Em que aspetos – e eu irei procurar identificar três aspetos que estão na origem da social-democracia e que depois estão claramente refletidos também na identidade política do PSD – é que a social-democracia, ao longo da história do nosso partido, e ainda hoje, se manifesta claramente como aquilo que confere identidade a este projeto político que o nosso partido reflete.

E em terceiro lugar, em que medida é que esses três aspetos são fundamentais, e são particularmente importantes, eu diria, hoje, para enfrentarmos desafios económicos, sociais, que enfrentamos, desafios também políticos que enfrentamos. Desafios, alguns de origem interna, outros de origem externa.

Deixem-me começar… quando eu procurei pensar um pouco sobre o que iria dizer hoje aqui, fui ler, fui procurar ler e procurar encontrar alguns textos históricos do PSD. E há um acervo de livros do meu pai – talvez alguns de vocês saibam, o meu pai chegou a ser quer deputado quer Presidente de Câmara, foi um dos primeiros Presidentes de Câmara eleitos na democracia – e fui a um acervo de livros que tinha lá em casa, alguns deles textos históricos de Sá Carneiro, do PPD, fui ler o programa original do PPD, na altura, e encontrei este livro, que é o livro do Eduard Bernstein, que muitos consideram como a obra fundamental da social-democracia, que diz os pressupostos do socialismo e as tarefas da social-democracia.

Mas particularmente interessante para mim foi quando eu peguei no livro, abri, e encontrei esta carta. Esta é uma carta do, na altura, presidente do PPD, Francisco Sá Carneiro, dirigida ao meu pai que tinha acabado de ser eleito Presidente da Câmara pelo PPD, dizendo precisamente – não apenas dando os parabéns, congratulando, pela vitória nas eleições autárquicas, e pelo início das funções, mas sobretudo para aconselhar este livro como, digamos, um livro inspirador, um livro fundamental da prática política do PPD.

Isso foi particularmente revelador para mim, porque demonstrava… pensem bem isto, imagino que este livro terá sido entregue não apenas ao meu pai, mas provavelmente a todos os presidentes de Câmara eleitos pelo PPD nas primeiras eleições autárquicas democráticas. E portanto significava bem a importância que Sá Carneiro atribuía a este livro, a esta obra, enquanto matriz ideológica do PPD, hoje PSD. E portanto, eu resolvi partir precisamente desta obra; voltei a ler esta obra do Bernstein, e se nós lermos esta obra do Bernstein, e lermos um pouco mais sobre o Bernstein, nós percebemos desde logo onde está a identidade, não apenas da social-democracia, mas a identidade do nosso partido.

Bernstein era originalmente um socialista marxista, ele foi, aliás, amigo do Marx e particularmente do Engels. Mas isso não o impediu, bem pelo contrário, de colocar em causa quer os pressupostos do socialismo marxista, quer a estratégia política prevista e defendida pelo socialismo marxista.

E isso, lendo o livro, nós percebemos, decorre de duas circunstâncias fundamentais. Uma de cariz metodológico e outra de cariz filosófico. A primeira, de cariz metodológico, tem a ver com aquilo que o Bernstein observava na realidade, ou seja, com uma análise empírica. E ele não observava na realidade a evolução histórica antecipada pelo materialismo histórico, pelo marxismo. Não observava na realidade nem essa evolução histórica, e mais, entendia que a evolução que ele observava, por exemplo, com o crescimento da riqueza, era importante para permitir a obtenção dos próprios objetivos socialistas. Porque que sentido faria alargar a esfera dos beneficiários da riqueza, a todos, aos trabalhadores, sobretudo, aos operários, que era a preocupação na altura, se não houvesse riqueza para distribuir? Ele tinha desde logo essa preocupação.

E tinha, em segundo lugar, uma reserva muito grande através da observação da realidade, de que realmente a ideia do conflito de classes que depois iria, num determinado momento, tornar-se insustentável, gerando uma revolução, ele não via esses pressupostos a verificarem-se.

E mais – e esta é a segunda influência que o leva a reconstruir o socialismo –, ele achava que havia um risco, no entendimento dessa evolução histórica de forma determinista, como inevitável. E esse risco era um risco autoritário. Isso tem a ver com a tal influência, se quiserem, de cariz filosófico. Bernstein, ao contrário de Marx e Engels, que eram muito influenciados por Hegel, um filósofo que tem uma visão da História muito determinista, foi muito influenciado por Kant, que é o filósofo que está na origem do liberalismo político. Estamos a falar aqui de liberalismo – quando se utiliza a palavra liberalismo, ela hoje em dia já é tão manipulada, tão usada, tão abusada, que frequentemente há equívocos quanto ao uso da palavra.

O liberalismo, na sua origem, é sobretudo uma ideia de universalidade, por um lado, kantiana, a ideia de que devemos tratar todos como desejaríamos ser tratados, e que todos merecem um reconhecimento de dignidade igual. E que implícito nisso está a ideia de que cada um deve ter a liberdade de determinar o seu próprio destino. Ora, estes pressupostos do liberalismo do Kant influenciaram o Bernstein muito mais do que a filosofia do Hegel. Pelo contrário, ele achava que a importância da filosofia do Hegel, com aquele determinismo histórico, tinha o risco de conferir um caráter autoritário ao socialismo.

E portanto, num certo sentido, o Bernstein, com a sua social-democracia, antecipa – e há até quem relacione de forma próxima – aquilo que outros vieram a chamar de socialismo liberal, se quiserem.

Ora, estes dois pontos de partida do Bernstein, que se refletem claramente neste livro, por um lado, uma visão da realidade, e uma leitura da realidade como não correspondendo ao que tinha sido antecipado pelo materialismo histórico, pelo socialismo marxista; por outro, uma preocupação grande com elementos liberais na interpretação e na estratégia do socialismo, para que não tivesse desvios autoritários, levaram-no a reconstruir o socialismo. Ele na altura via este projeto como - ele era parte do partido socialista na altura – como uma reconstrução do projeto socialista, como reconstruindo o projeto socialista com um conjunto de valores diferentes e uma estratégia política diferente.

Desde logo, uma defesa clara de que o futuro é aberto. Ao contrário do materialismo histórico, que via a evolução histórica como determinada, inevitável, ele pelo contrário acha que o futuro estava nas mãos dos próprios trabalhadores, dependia deles. E a evolução desse futuro e as formas que poderia vir a concretizar-se, dependia do próprio exercício da liberdade.

Em segundo lugar, uma substituição da utopia pelo idealismo. E relacionado com isto, uma aposta e uma ênfase muito grande no exercício da política com cariz reformador e não com cariz revolucionário. Ele acreditava e passou a defender as reformas, e não a revolução, ao contrário do socialismo marxista.

Uma consequência fundamental desta reinterpretação, desta reconstrução do socialismo, pelo Bernstein, é que o socialismo, os valores, os objetivos, as finalidades do socialismo que ele defendia só poderiam ser atingidos, de forma fiel aos próprios pressupostos do socialismo, se o fossem por via democrática. E este é desde logo um elemento marcante, uma divisória marcante com o socialismo, como era interpretado até essa altura.

O Bernstein tem uma frase que diz que – neste livro, precisamente – a democracia é um meio e um fim. Porquê? Porque a democracia é, em si mesmo, para ele, a maior realização do socialismo. E é a maior realização do socialismo porque a democracia significa a igualdade de direitos para todos os membros da comunidade humana. Portanto, a maior concretização do objetivo da igualdade, da promoção da igualdade, está desde logo na própria democracia.

Mas, em segundo lugar, esta igualdade, esta promoção da igualdade - e desde logo nessa relação com a democracia – está em relação estreita com a liberdade. E isso tem muito a ver com a tal influência kantiana.

Há consequências que resultam daí, e que estão claras também neste livro e naquilo que o Bernstein explicita sobre a conceção da social-democracia. A primeira é que a democracia não deve ser vista apenas como a regra da maioria. Isto é muito importante, já vou falar mais à frente, porque hoje em dia há conceções políticas crescentes, na esquerda e na direita, de cariz populista, que ainda se dizem e são, num certo sentido, democráticas, mas democráticas naquilo que na teoria política se chama a democracia iliberal, ou seja, uma democracia que vê a democracia como esgotando-se apenas na regra da maioria. Sem uma lógica de contrapoderes, sem uma lógica de proteção das minorias, sem uma lógica de proteção de liberdades fundamentais, sem uma preocupação grande com a qualidade da participação no processo democrático.

Não é a visão da democracia do Bernstein, que ele defende neste livro. Pelo contrário, ele vê a democracia como tendo limites que decorrem da proteção da liberdade, limites que têm de ser impostos à vontade da maioria, sob pena de a maioria se transformar numa tirania dessa maioria sobre os outros. Em segundo lugar – aspeto importante - o Bernstein concebe a social-democracia como uma continuação do liberalismo, do liberalismo político. Isto é muito interessante para aqueles que, hoje em dia, acham que de um lado está o liberalismo, do outro está a social-democracia. Não é.

O Bernstein diz que o socialismo não é apenas o sucessor no tempo do liberalismo, mas é o seu herdeiro espiritual legítimo. Isto é uma frase do próprio Bernstein.

Isto não é estranho se reconhecermos e se entendermos o liberalismo, precisamente, como um projeto que visa reconciliar igualdade e liberdade, através do princípio da universalidade. Como vos dizia, o Kant, precisamente, a ideia de princípio de universalidade, a ideia de que todos têm uma igual dignidade política e social que deve ser reconhecida por todos. Mas também a ideia desse princípio da universalidade como manifestando-se, depois, numa concretização do funcionamento do sistema político e da democracia como tendo por base um consenso entre todos os membros da sociedade quanto às regras que vão gerir esse processo democrático. Isso leva precisamente a ter na origem da social-democracia esta reconciliação entre igualdade e liberdade.

E isto está muito presente – estes três pressupostos que vos manifestei – estão muito presentes quer no programa original do PPD, quer no programa, hoje, do PSD. Há três pontos que me parece que correspondem à identidade da social-democracia, tal como o Bernstein a definiu, e que hoje em dia ainda permanecem como parte da identidade política do PPD/PSD.

Às vezes, nós ouvimos dizer que o PPD, e o PSD, hoje em dia, é um partido – ouvimos isso nos comentários – é um partido sem grande identidade ideológica, é um partido que inclui visões políticas muito diferentes – e seguramente há diferentes sensibilidades dentro do nosso partido, como dentro de qualquer partido, como dentro de qualquer grupo de pessoas –, mas, aquilo que eu procurarei demonstrar e dizer é que, quanto àqueles que são os três princípios basilares, se quiserem, as três preocupações basilares que estão na origem do projeto social-democrata, eles não apenas se concretizaram no projeto e no programa fundador do PPD, como ainda hoje permanecem como os princípios fundamentais que regem e determinam a identidade política do PSD.

Desde logo, primeiro, a promoção e a valorização da igualdade e liberdade, ao mesmo tempo que se entende essa igualdade e liberdade como não estando em tensão, mas sim reconciliando-as. Como? Se vocês forem ler o programa original do PPD, está lá definido, por exemplo, qual é finalidade última da sociedade que o partido vai promover. E isso vem escrito como o livre desenvolvimento da personalidade integral de cada ser humano. E esta - depois é concretizado mais à frente - para se conseguir a promoção deste livre desenvolvimento da personalidade integral de cada ser humano, é necessário garantir a igualdade de oportunidades.

Portanto, vejam a relação que desde logo no próprio programa original do PPD é feita entre a promoção da igualdade e a liberdade. É importante, é fundamental que haja igualdade, mas essa igualdade deve ser dirigida não a impor um modelo de vida comum, através do Estado, a todos os indivíduos, mas, pelo contrário, essa igualdade deve ser dirigida a garantir a cada um dos indivíduos, a cada um dos cidadãos, a cada uma das pessoas, a capacidade de se poder realizar individualmente, de poder livremente escolher o seu modelo de vida e a sua forma de realização pessoal. Portanto, há uma relação muito próxima que é estabelecida entre igualdade e liberdade, que são colocadas, não em contraposição, mas, pelo contrário, ao serviço da mesma finalidade, que é esse reconhecimento de que cada indivíduo deve poder exprimir na sociedade aquilo que é o seu projeto de vida pessoal e a forma de se realizar individualmente.

Isto leva também a que, desde o início, na preocupação com a igualdade, que compõe o programa político do PSD, e que compôs sempre a ação política do PSD, a preocupação com a igualdade esteja muito próxima de uma preocupação com a mobilidade social.

Reparem que – e aliás o próprio Bernstein também reconhece isso – nós não podemos esperar que as pessoas sejam todas iguais, nem devemos esperar, na sociedade, que as pessoas sejam todas iguais. Há diferenças. E dentro dessas diferenças, vão existir naturalmente algumas desigualdades. Mas o que é fundamental é que cada um possa ter na sociedade a possibilidade de poder, de acordo com o seu mérito e com o seu esforço, ambicionar chegar a qualquer posição social nessa sociedade. Esta é a ideia da mobilidade social.

A não existência da mobilidade social é a ideia de que as pessoas não podem progredir, estão para sempre circunscritas a uma determinada posição social – quem é pobre permanece pobre, quem é rico permanece rico, por exemplo. Ora, o objetivo da mobilidade social é que, pelo contrário, cada um deve ter a oportunidade, de acordo com o seu esforço e o seu mérito, de atingir aquilo que ambiciona, o que quer que isso venha a ser.

Portanto, esta é a primeira grande herança do Bernstein que está presente no programa do PPD original e está hoje em dia, ainda, presente também no programa do PSD. Uma preocupação e uma valorização da igualdade e da liberdade, vistas como não estando em contraposição, mas, pelo contrário, ao serviço da mesma finalidade

A segunda grande herança resulta da tal perspetiva empírica de que o Bernstein partiu quando quis reavaliar, colocar em causa, o socialismo marxista, que é uma conceção realista da sociedade e da prática política. Isso que esteve na origem da reconstrução do socialismo pelo Bernstein, que esteve na origem da criação e desenvolvimento da social-democracia, é um aspeto fundamental na prática política do PSD, mas também reconhecido explicitamente nos seus programas.

No programa original do PPD, por exemplo, lê-se que tem de existir uma adequação constante e realista da ação política. E mesmo no atual programa, por exemplo, diz-se que o PSD assume a rejeição de uma ideologia fechada à realidade. Porquê esta preocupação? Porque os projetos políticos que ignoram a realidade, ou se traduzem, necessariamente, depois, em projetos de experimentação social, em que os cidadãos, as pessoas, são instrumentalizados enquanto objetos de uma experiência ideológica e de formas de engenharia social. Ou, e isso foi o que nós vimos em muitos regimes comunistas, a ideologia, o projeto político, afastado da realidade, transformou esses povos em objeto de uma experiência política desastrosa.

Ou, quando isso não acontece, acontece algo que é também negativo, embora possa não ser tão catastrófico, que é: a política é transformada em pura demagogia. Um discurso político que não pode ser concretizado na realidade é demagogia, não é nada mais do que simplesmente demagogia. Ora, se há aspeto que é fundamental na social-democracia, na sua origem, enquanto teoria política, e que é fundamental na prática política do PSD, eu direi, é esse reconhecimento, é essa relação profunda com uma abordagem e uma prática política realista, que fazem da social-democracia, por definição, uma ideologia que não é fechada nem dogmática.

E é por isso, só a título de exemplo, que a social-democracia não se confunde nem com o Estado, nem com o mercado. O Bernstein disse, de forma muito famosa, que mercados quanto possível, Estado quando necessário. O que isso, sobretudo, reflete, é uma ideia de ausência de preconceitos. Porquê? Porque o Estado e o mercado não são, em si mesmo, ideologias, não são um conjunto de valores. São processos, são formas de decisão.

No Estado, as vontades e as preferências individuais são agregadas através dos mecanismos tradicionais de funcionamento do Estado, que vai do voto às pressões, por exemplo, através de manifestações ou de greves, ou de formas até de lóbi político. Há muitas formas de participação no Estado.

No mercado, se quiserem, os bens, os serviços, as preferências individuais, são distribuídas, são agregadas, são tratadas através daquilo que são as transações do mercado. Em si mesmo, Estado e mercado não são ideologias. E sobretudo isso é visível se nós reconstruirmos a tradicional associação que é feita entre Estado e mercado. Porque é que Estado e mercado se transformaram, do meu ponto de vista de forma artificial, em instrumentos de divisão política? Porque se tendeu, historicamente, a dizer que onde existia o Estado era assegurada igualdade. O Estado era o mecanismo de assegurar a igualdade. O mercado é o mecanismo de assegurar a liberdade.

Ora, isto não é necessariamente assim. Porquê? Porque os mecanismos de participação no Estado muitas vezes dão mais poder a alguns do que a outros. E isso significa que nem sempre as políticas que um Estado acaba por adotar são políticas que promovem a igualdade, pelo contrário, podem ser um simples reflexo das estruturas de poder, se quiserem, dos equilíbrios de poder internos nos mecanismos de participação no Estado. É por isso que, por vezes, e historicamente nós podemos ver isso, políticas desenvolvidas pelo Estado não promoveram a igualdade, pelo contrário, agravaram situações de desigualdade.

Mas o mesmo acontece com o mercado. A ideia de que o mercado é liberdade, e é sempre o garante de liberdade, é falsa. Nós temos imensos exemplos de formas de concentração de poder no mercado que levam a que alguns atores económicos, alguns agentes económicos nesse mercado, com esse poder, possam limitar a liberdade dos outros.

Hoje em dia, por exemplo, no domínio tecnológico vemos isso crescentemente. Não sei se vocês têm o Whatsapp. Para quem tem o Whatsapp, nos últimos dias, de certeza que estão sempre a receber o aviso para aceitarem a nova política de privacidade, que implica que o Whatsapp vai dar o vosso número de telefone à Facebook, que comprou o Whatsapp. Que liberdade é que vocês têm para realmente recusarem isso? Vão abdicar do Whatsapp, que se tornou dominante e detém praticamente o monopólio?

Esse é apenas um exemplo, se quiserem anedótico, mas real e importante, de como o mercado muitas vezes não é o garante da liberdade. Só a intervenção do Estado, por vezes, garante a liberdade no mercado, em certas circunstâncias.

Mas eu dei estes exemplos só para demonstrar como fazer divisões ideológicas através da divisão Estado/mercado é falso. E uma das grandes vantagens da social-democracia é não ter esse preconceito. Nem a favor nem contra o Estado, nem a favor nem contra o mercado. A nossa preocupação é de que forma é que esses instrumentos podem ser utilizados para promover os objetivos que nós temos para a sociedade, da tal promoção da igualdade e da liberdade, da capacidade de cada um se poder realizar nessa sociedade.

O terceiro princípio fundamental, terceira herança da social-democracia do Bernstein, que encontramos quer nos programas políticos, quer na prática do PPD/PSD, é uma preocupação muito grande com a qualidade da democracia. E desde logo, não confundir a democracia apenas com a regra da maioria. A democracia não é apenas contar cabeças. Nós vimos isso, desde logo, no programa do PPD. Uma ideia de que a democracia se faz de acordo com regras, uma ideia de que é preciso investir – e vemos isso também no programa atual do PSD –, é preciso investir na qualidade da participação democrática. Que a democracia se faça em relação com os outros; a democracia não é apenas juntar-nos e votarmos. A democracia é sujeitar-nos a um debate com os outros, a deliberarmos e a discutirmos sobre as nossas ideias.

Portanto, essa preocupação muito forte com a qualidade da democracia está também, desde sempre, na origem e, digamos, faz parte desta identidade do projeto político do PSD.

Aquilo que que quero defender a seguir é que estes três pilares que vêm da história da social-democracia, e que encontramos refletidos quer nos programas do PPD/PSD, quer na sua prática política ao longo destes quarenta anos de democracia, são talvez hoje mais importantes do que nunca. E são talvez hoje mais importantes do que nunca devido aos desafios, quer nacionais, quer globais e europeus, que enfrentamos.

O primeiro desafio que nós temos é um desafio que diz respeito à igualdade e à mobilidade social. Esse desafio é, desde logo, particularmente importante em Portugal. Nós temos dois problemas estruturais no nosso país. Um que tem a ver com a criação de riqueza e que tem a ver com a competitividade da nossa economia; e outro que é um desafio de justiça social.

E esse desafio de justiça social é visível, desde logo, na circunstância de nós sermos, há muitas décadas, um dos países mais desiguais da Europa e com menos mobilidade social. Têm aí esse exemplo, nesse quadro, e podem ver que Portugal é um dos países mais desiguais, penso que neste momento somos o quinto país mais desigual da União Europeia. E isto não é de agora, isto é estrutural de há muitas décadas no nosso país.

Outro aspeto, já agora, interessante para olharem nesse quadro. Esse quadro utiliza o índice de Gini, que é um índice que verifica, no fundo, a distribuição da riqueza entre as diferentes pessoas na sociedade. Talvez o índice mais utilizado para medir a desigualdade. E têm-no aí antes e após transferências, ou seja, se quiserem, antes e após a intervenção do Estado. E um aspeto que nos deve fazer refletir muito enquanto país, é que, em Portugal, o impacto das políticas redistributivas, do papel do Estado na redistribuição, parece ser um dos mais baixos entre os países europeus.

Ou seja, não apenas nós temos, desde logo como ponto de partida, uma forte desigualdade, mas, em segundo lugar, as políticas públicas que desenvolvemos ao longo de anos, têm um papel muito menor na correção dessa desigualdade do que assistimos em outros Estados europeus. E essa deve ser uma preocupação que nós devemos ter na reflexão sobre aquilo que têm sido as nossas políticas públicas. E muitas vezes – e nós tivemos durante muitos anos – políticas públicas que são apresentadas, defendidas, hoje em dia, ainda, defendidas fortemente, como sendo fundamentais precisamente para promover a igualdade. Na realidade elas não têm esse impacto desejado.

Um segundo aspeto interessante, é que, curiosamente - e isto, se quiserem, desmente um dos mitos que foi criado nos últimos anos -, a desigualdade não se agravou em Portugal durante o período da crise que tivemos nos últimos cinco anos. De acordo com o índice Gini, que têm aí, como disse é a medida mais comum da desigualdade, mas também, por exemplo, se formos ver um outro índice, que tem a ver com a distribuição por quintis, ou seja, por diferentes classes de rendimento na sociedade. Eu posso dizer-vos que em 2010 o índice de Gini, ou seja, a medição da desigualdade em Portugal, era 34,2. Em 2014 ele é de 34.

Ou seja, houve uma ligeira descida da desigualdade em Portugal. Não apenas a desigualdade não se agravou, como houve uma ligeira redução da desigualdade. Isto é extraordinário num período de forte crise económica e social do país. O que é que isto significa? Isto não significa, atenção, que eu esteja a dizer que não houve perda de rendimentos no país, nos últimos anos. Houve, naturalmente. Em consequência da crise financeira, em consequência de não nos podermos financiar, o país teve que fazer um forte ajustamento, teve de adotar medidas de austeridade em função dessa crise, e isso teve como consequência uma diminuição do rendimento disponível para os portugueses.

Mas o que é interessante notar é que essa diminuição de rendimento não levou a um agravamento da desigualdade, ao contrário daquilo que muitos disseram. E não levou porquê? Porque o desenho das medidas de austeridade teve uma forte preocupação social. É isto que esta evolução do índice da desigualdade demonstra. Demonstra que é verdade que todos em Portugal perderam rendimento, mas, ao contrário do que se diz, aqueles que tinham mais perderam mais, em termos proporcionais, do que aqueles que tinham menos. De novo, não estou aqui a desvalorizar os sacrifícios sociais que foram feitos, os sacrifícios que os portugueses fizeram.

O que estou a dizer é que o discurso, a narrativa, do agravamento da desigualdade, não teve correspondência na realidade. E mais, eu anteciparia já que provavelmente em 2015 - que não existem ainda os números - a desigualdade provavelmente ainda diminuiu mais. Porquê? Porque o desemprego caiu. Normalmente quem está em desemprego automaticamente agrava as circunstâncias e a medição da desigualdade.

Mas aqui eu queria também centrar-me de novo neste desafio estrutural que nós temos, que é um desafio de desigualdade. E que tem uma relação muito forte… há muitas variáveis para explicar o porquê da desigualdade. Uma delas, seguramente, uma das mais usadas, e uma das correlações mais fortes que é estabelecida em termos de desigualdade é com a educação. E vocês podem ver como Portugal continua a ser um país, a nível das qualificações, no nível da educação, muito mais baixo do que o resto da Europa.

É um país que tem evoluído muito, incluindo nos últimos anos. Mesmo em situação difícil, por exemplo ao nível da taxa de participação escolar, do sucesso escolar, Portugal melhorou muito. Foi possível, com menos dinheiro, mesmo assim, melhorar muito nesses índices. Mas o atraso que o nosso país tem é extraordinariamente forte e isso dificulta muito, desde logo, essa recuperação.

Este combate à desigualdade e a promoção da mobilidade social são fundamentais para o futuro do país. Têm de ser a prioridade política em termos de justiça social. Mas eles vão ocorrer num contexto nacional e global extremamente negativo e difícil para esse combate da desigualdade. O contexto nacional é definido pela circunstância de, depois de termos convergido com a Europa, durante mais de vinte anos, nos primeiros vinte anos do processo de integração europeia – podem ver aí -, a partir de, aproximadamente, 1994 Portugal voltou a divergir com a Europa. Ou seja, nós tivemos durante os nossos anos de adesão à União Europeia, vinte anos de forte convergência com a União Europeia, e depois de divergência. Ou seja, voltamos a empobrecer face à Europa.

De forma interessante, só no último ano é que Portugal voltou a convergir de novo com a Europa. No ano passado, Portugal tinha retomado uma trajetória de convergência com a Europa. Infelizmente, os dados que temos relativamente a este ano – e ainda hoje tivemos confirmação disso – determinam que o país voltou a divergir da Europa. Se quiserem, mais do que as reversões de políticas, preocupa-me a reversão da convergência que tínhamos reiniciado com a Europa. Esta, em termos estruturais, de criação de riqueza para podermos ter a riqueza que depois possamos distribuir para promover a igualdade e a mobilidade social, tem de ser a nossa grande preocupação.

Se nós não conseguirmos voltar a convergir com a Europa, e infelizmente estamos há muitos anos a divergir da Europa, tivemos um ligeiro período, o ano passado, em que voltámos a convergir com a Europa, e agora retomamos uma estratégia de divergência com a Europa, se nós não conseguirmos resolver os problemas estruturais que determinam esta divergência com a Europa, também não vamos conseguir prosseguir de forma eficaz aquele que deve ser o nosso objetivo último, que é a promoção da igualdade e da mobilidade social. Que é oferecer a cada português a oportunidade de livremente desenvolver o seu projeto de vida. Essa tem de ser uma grande preocupação.

Ora, esta dificuldade, que é uma dificuldade estrutural nossa, é agravada por um contexto internacional em que a desigualdade tem aumentado e a mobilidade social também. A nível internacional, se nós virmos a nível da evolução do mundo, a nossa grande preocupação deve ser com o agravamento das desigualdades e com a redução da mobilidade social.

Curiosamente, o mundo tem crescido mais. De novo, é importante não confundir as coisas. E em segundo lugar, as economias menos desenvolvidas têm convergido com as economias mais desenvolvidas. Por isso é que eu dizia que o caso português ainda é mais grave. Porque não apenas no mundo está a agravar-se a desigualdade, mas a desigualdade está a agravar-se no mundo num contexto em que os países têm vindo a convergir. Mas nós estamos a divergir da Europa, o que ainda é pior. Para além da desigualdade, nem sequer os pressupostos económicos que nos podem oferecer os mecanismos para combater essa desigualdade, nós estamos a conseguir garantir e promover.

Mas no mundo temos assistido a uma convergência económica, ou seja, os países menos desenvolvidos, as economias emergentes, têm convergido com as economias mais desenvolvidas. Portanto, entre Estados tem existido convergência económica. É por isso, também, que a pobreza tem diminuído no mundo.

No entanto, esta convergência entre Estados, esconde que dentro de cada sociedade, se quiserem, dentro de cada Estado, a desigualdade se tem vindo a agravar de forma exponencial. E têm aí um gráfico que demonstra claramente como a desigualdade tem vindo a aumentar e constitui hoje, realmente, um grande desafio a nível global.

Isto diz-nos o quê? Isto explica, se quiserem, alguns dos receios, das insatisfações, que têm vindo a ocorrer com a globalização. Isto exprime que a globalização promove a criação de riqueza, e tem ajudado a combater a pobreza, mas ao mesmo tempo afeta a distribuição de riqueza dentro dos Estados.

Há várias variáveis que o podem explicar, não vou aqui falar de todas, mas há uma que é uma variável nova, que é introduzida, realmente, pela globalização. Que tem a ver com a redução substancial da tributação sobre os capitais e as empresas. Ou seja, num mundo economicamente integrado, num mundo globalizado, as empresas e os capitais têm uma mobilidade que os outros fatores não têm. E isso leva a que possam, se quiserem, escolher graus de fiscalidade mais baixos. E portanto leva, em termos agregados, em termos globais, a que empresas e capital contribuam fiscalmente, hoje, menos do que os particulares. Têm aqui um exemplo da redução do imposto pago pelas empesas a nível europeu nos últimos doze anos – reduziu quase 50%.

Atenção, isto não quer dizer que isto possa ser resolvido a nível nacional. Já vou falar disso, brevemente. Um Estado, individualmente - e este é que é o desafio -, individualmente, do ponto de vista do Estado, o que faz sentido, para atrair investimento, num contexto de competição no mercado global, é ter um imposto sobre as empresas mais baixo - porque isso atrai investimento e gera emprego.

Mas não podemos ignorar que isto cria um problema de redistribuição. Porquê? Porque a nível global leva a que, em todas as sociedades, a contribuição que é feita pelas empresas, pelo capital associado a essas empesas, diminui face à contribuição que é feita pelos trabalhadores, pelos indivíduos. Esta é uma preocupação que nós temos de ter. E isto explica parte do agravamento da desigualdade dentro das sociedades.

Este desafio, em termos de desigualdade, que é criada pelos processos de globalização, que, como disse, tem ajudado a combater a riqueza, tem promovido a convergência entre sociedades. Se quiserem, o que tem acontecido é: tem havido um crescimento da riqueza, mas com um alargamento da disparidade. Quem tem menos tem vindo a ter mais, mas quem tem mais tem vindo a ter ainda mais.

E portanto, essa desigualdade extrema que, nalguns casos, se está a começar a verificar, tem duas consequências, que é criar tensões sociais muito fortes; e em segundo lugar, quando a desigualdade é muito grande, aquilo que se verifica é que a própria mobilidade social deixa de existir. Ou seja, começa a existir a perceção de que aqueles que estão em determinados setores da sociedade, que têm menos, têm poucas possibilidades de poder vir a ter mais, de progredir de acordo com o seu mérito e o seu esforço. E isso é um problema fundamental.

E este desafio é agravado pela nova economia digital e da inovação. Vocês têm aí um gráfico que procura ilustrar aquilo que é o impacto potencial da robótica, da inteligência artificial, na economia. E há vários estudos, hoje em dia, que apontam para isto, embora este tipo de previsões, deve dizer-se, é muito difícil de ser feito. E que indicam que, em relativamente poucos anos, 50% do emprego associado à manufaturação, pode estar em risco. 50% desse emprego.

E, já agora, notem como Portugal é um dos países mais expostos a esse risco, de acordo com esse estudo.

Em segundo lugar, a economia da inovação e a economia digital, e de novo – isto não é uma crítica à economia digital e à economia da inovação, que produz imensas vantagens na sociedade; traz acesso a novos bens, a novos serviços, melhora a qualidade de vida, promove a criação de riqueza, estimula a inovação - mas tem um impacto negativo em termos de distribuição de riqueza. Pelo impacto que pode ter no emprego, em determinado tipo de empregos, e também porque a economia digital, sendo daquelas que tem uma taxa, por vezes, de falhanço muito elevada, ou seja, há muitos projetos da economia digital que falham, mais do que do que projetos tradicionais, mas quando têm sucesso, a sua taxa de retorno é muito maior e frequentemente mais concentrada. Porquê? Porque grande parte da mais-valia económica está onde? Está na propriedade intelectual; está na criação, na ideia por detrás de um projeto inovador, por detrás de um projeto da economia digital. Isto leva a que o retorno económico se concentre em quem teve essa ideia – os autores dessa ideia, se quiserem.

Ainda ontem tivemos um exemplo de uma empresa ícone desta economia digital, como a Apple, e de uma multa milionária que lhe foi aplicada que reflete, precisamente, a circunstância de essas empresas, também por poderem circular, na economia digital da inovação, de forma muito mais fácil do que outras empresas, poderem tirar partido também da tal mobilidade para diminuírem aquilo que são os seus encargos fiscais face aos encargos dos outros membros da sociedade.

Este conjunto de elementos, os desafios que decorrem da globalização e desta nova economia digital e da inovação, colocam-nos, do meu ponto de vista, num momento semelhante àquele que originou o aparecimento do Estado Social, e que, curiosamente, coincidiu historicamente com a emergência da social-democracia. Muitos historiadores identificam o aparecimento do Estado Social, ou seja, a atribuição ao Estado de um papel de proteção social, de garantia de redistribuição, à Revolução Industrial. Porque a Revolução Industrial, por um lado, reduziu formas tradicionais de solidariedade, assentes na família, por exemplo, na medida em que as pessoas passaram a ir trabalhar, tinham um ritmo de trabalho diferente. Mudou a forma de organização da sociedade, e mudando essa forma de organização da sociedade, colocou em causa as formas de apoio social espontâneas que existiam nessa sociedade. Portanto, gerou a necessidade de criar outras formas de apoio social que deram origem ao Estado Social.

E depois há outros historiadores que veem no aparecimento do Estado Social também um compromisso político e social, se quiserem, implícito. Porquê? Porque a Revolução Industrial também estava a produzir um forte agravamento da desigualdade, e uma forte concentração de riqueza em certos setores da sociedade. Portanto, digamos que o aparecimento do Estado Social foi uma forma de apaziguar, trazer paz social, face aos riscos que poderiam daí decorrer.

Eu acho que nós hoje estamos perante um desafio semelhante. A social-democracia tem hoje de contribuir para responder a um desafio semelhante àquele que levou ao aparecimento do Estado Social aquando da Revolução Industrial. Um desafio que consiste na reconstrução do contrato social, no contexto de uma revolução económica e social que está a ser produzida, quer pela globalização, quer pela economia digital. Este é o grande desafio político e social que nós temos. Globalmente, mas com uma expressão, eu direi, ainda mais grave, mais importante, no nosso país.

E tem de o fazer, temos de fazer isso, respondendo simultaneamente a desafios políticos, que são cada vez mais visíveis, nos quais os outros dois pilares fundamentais da social-democracia – a preocupação com uma prática política realista e com a qualidade da democracia – são fundamentais.

E essa relação entre a prática política e a qualidade da democracia é fundamental e é muito próxima. Uma prática política que ignora a realidade é uma das coisas que mais contribui para a perda de qualidade da democracia. Essa prática adultera os juízos políticos que os cidadãos podem fazer e falsifica os instrumentos de responsabilização política.

Um exemplo é aquilo que é o discurso sobre a Europa que tem acontecido em Portugal. Se vocês pensarem no discurso político que foi feito durante o período de ajustamento em Portugal, um aspeto notável foi a circunstância de muitos assumirem nesse discurso político que os sacrifícios que nós fizemos, enquanto país, que os portugueses fizeram, era uma escolha e não uma necessidade.

Essa narrativa política, só era possível ser promovida – e foi promovida por muitos (essa narrativa de que, de alguma forma, aqueles sacrifícios que nós fizemos, nós não tínhamos que ter feito aquilo, foi uma escolha, era um projeto ideológico, não era uma necessidade). O pressuposto fundamental para essa narrativa política era que, de alguma forma, isso seria possível, realmente, se a União Europeia nos desse mais dinheiro, mais tempo e nos perdoasse parte do dinheiro que nos viesse a dar.

O que acontece é que quando esse discurso político se confronta com a realidade da União Europeia - que é que essa União Europeia, uma União Europeia que nos iria dar dinheiro de graça todo o dinheiro que nós quiséssemos -, quando a realidade europeia não é essa, esse discurso político muda. E então começa a ser o discurso de que, na realidade, o que acontece é que nós não queremos mudar a realidade. Bastava nós querermos mudar a Europa. A Europa seria o que nós quiséssemos.

A primeira coisa era que nós não tínhamos que fazer os sacrifícios, porque na realidade se a Europa fizesse outras coisas, nós não tínhamos que fazer esses sacrifícios. Como a Europa não é essa, então o problema passa a ser: nós não queremos mudar a Europa. E depois quando se vê que a Europa realmente não muda para aquilo que nós até poderíamos gostar que ele fosse, este discurso político, em vez de falar de soluções, passa a falar de bodes expiatórios. É um discurso que já não apresenta soluções, apresenta é culpados. Diz: a culpa não é nossa, a culpa é deles. Porque se a Europa fosse diferente, isto não teria que ser assim.

Este discurso político, que é demagógico, porque longe da realidade, que é sobretudo, e de forma ainda mais preocupante, improdutivo, porque a única coisa que no final deste caminho ele nos oferece não é uma solução, mas é um bode expiatório, esse discurso político está hoje dominante na coligação que governa o país. E é um discurso político que tem como marca fundamental colocar a estratégia política à frente da realidade em que o país vive.

E nesse contexto é cada vez mais importante fazer um discurso político que tenha como pressuposto, desde logo, a realidade. Este discurso político, o discurso político que domina a atual coligação que governa o país, é um discurso político em que a política, se quiserem, se transforma em populismo. E o problema do populismo é que o populismo não oferece soluções, só oferece culpados.

Os populistas têm uma aptidão: eles captam os medos, os receios, dos cidadãos, das pessoas e identificam-se com estas. O seu sucesso, se quiserem, está em identificar esses receios e esses medos e em exacerbar esses receios e esses medos, mas não em os solucionar. Apenas alimentam e se alimentam da frustração política que isto vai causar nos cidadãos. No final de uma prática política distante da realidade, a única coisa que temos e que teremos são bodes expiatórios, culpados, mas não soluções para os portugueses.

Claro que este não é um fenómeno apenas português, é um fenómeno de toda a Europa. O populismo tem vindo a crescer em toda a Europa. E na direita e na esquerda. E uma das minhas preocupações fundamentais é a circunstância de nós, hoje, termos partidos populistas que estão no poder já. De direita, partidos populistas de direita, como na Polónia e na Hungria. Mas partidos populistas de esquerda também no poder. Na Grécia, e em Portugal, se quiserem, chamemos-lhe um caso híbrido de populismo. E eu não gosto de ver Portugal incluído nestes quatro exemplos de discurso e prática populista dominante na Europa.

Esta deve ser uma das nossas preocupações fundamentais, mas não é fácil de solucionar. O problema da prática política realista é que ela tem de apresentar soluções que reconhecem a complexidade dos problemas que enfrentamos. E que, reconhecendo essa complexidade dos problemas, frequentemente também não nos pode oferecer soluções simples, e oferece antes soluções gradualistas.

Mas, paradoxalmente, num contexto em que temos um reforço de uma democracia que é cada vez mais direta, mais imediatista, isso é pouco conciliável com uma prática política que reconhece a complexidade dos problemas que enfrentamos. Essa é uma das grandes dificuldades de fazer política hoje, e fazer política com seriedade. É que aquilo que funciona, muitas vezes, do ponto de vista de comunicação, tende a assentar numa simplificação dos problemas que enfrentamos, quando os problemas que enfrentamos e a solução para esses problemas é, frequentemente, extraordinariamente complexa. E é um bocadinho como estar a combater com armas desiguais.

Neste contexto, e para concluir a minha intervenção, as prioridades da social-democracia em Portugal começam a ser claras, do meu ponto de vista, hoje.

Primeiro, contribuir para reconstruir o contrato social, face aos desafios da globalização e da nova economia digital, mas agravados por um contexto nacional de retoma da divergência económica com a Europa, e de fortes constrangimentos financeiros que permanecem no nosso país e com uma desigualdade e uma mobilidade social que são problemas estruturais do nosso país.

Em segundo lugar, a nossa segunda grande prioridade, deve ser contribuir para melhorar a democracia num contexto de crescente complexidade e de dificuldade em lidar com o mundo interdependente em que vivemos. Mas também aqui a resposta a este desafio é agravada, no nosso caso português, por uma cultura política recheada de vícios muito negativos.

A relação entre estes dois desafios, entre estes dois objetivos - que é reconstruir o contrato social em que se fundam as nossas sociedades hoje, e melhorar a qualidade da nossa democracia, retomando um discurso e uma prática política racional e realista dentro dessa democracia, e adaptando as nossas democracias a este contexto de interdependência do mundo em que vivemos - a relação entre estes dois objetivos é fortíssima.

Porque, quanto maior for a qualidade da nossa democracia, maior a probabilidade de conseguir enfrentar com sucesso os desafios económicos e sociais que enfrentamos.

Permitam-me que lhes dê um exemplo: a Suécia. Um país, aliás, emblemático da social-democracia, foi por isso também que o escolhi. Nos anos noventa a Suécia teve uma crise extraordinariamente grave, tal como Portugal teve recentemente. Tinha pouco crescimento e uma enorme despesa pública. Isso levou a que as taxas de juro rapidamente quadruplicassem, e a que o desemprego na Suécia, por exemplo, tivesse triplicado em pouco tempo. Curiosamente, o diagnóstico dos problemas estruturais da Suécia tinha algumas semelhanças, embora não todas, com Portugal. Uma população envelhecida, baixas taxas de natalidade, um sistema de Segurança Social insustentável, um sistema educativo onde, ainda que com fortes investimentos, o retorno não era correspondente a esse investimento que era feito em termos de qualidade de ensino e dos resultados da educação. E uma crescente perceção na sociedade de que esta estava dividida entre aqueles que já estavam dentro do sistema e beneficiavam dele, e os que estavam fora do sistema e tinham poucas probabilidades de poder vir a beneficiar desse sistema.

A Suécia é tida, no entanto, como um dos Estados que melhor se adaptou à globalização. Eu não vou apresentar aqui as reformas que a Suécia adotou, mas notaria dois aspetos muito importantes naquilo que a Suécia fez para conseguir dar resposta a isso.

Por um lado, salvaguardar o princípio da universalidade, que é a expressão dessa reconciliação entre igualdade e liberdade, que é traço fundamental da social-democracia. E em segundo lugar, a circunstância de essas reformas terem sido feitas sem preconceitos. Não se identificou a garantia de universalidade no acesso a esses serviços e prestações públicas com eles terem de ser prestados pelo Estado. Mas isso foi possível porquê? Porque é que isso foi possível na Suécia?

Isso foi possível na Suécia devido a uma cultura política que assentava em certos pressupostos e que é geradora de uma forte confiança nas próprias instituições políticas. Na Suécia há, desde logo, uma grande tradição de procura de compromissos e consensos políticos estruturais. Mas isso é possível, também, porquê? Porque funciona com base numa cultura política que, desde logo, aceita como comum a todos os campos políticos o reconhecimento da realidade.

Há, desde logo, uma aposta muito grande, e há literatura que explica isso, explica em que medida, por exemplo, é que foi essa cultura política na Suécia que permitiu estas reformas estruturais. E um dos aspetos fundamentais é a circunstância de aquilo que é, se quiserem, que são os factos, aquilo que é a realidade, ser apoiado num conhecimento técnico, numa informação do processo político por uma base técnica que é consensual e reconhecida por todos.

Se quiserem não se utilizam como instrumento de combate político argumentos que estão fora da realidade. Isso desde logo permite, por um lado, compromissos, porque há uma base para permitir esses compromissos que não existirá de outra forma. E, em segundo lugar, mesmo quando existem divergências, essas divergências têm pontos de contacto em comum, assentam na realidade.

Se quiserem, e para concluir, um dos problemas, para mim, fundamentais em Portugal, e um dos piores problemas da nossa cultura política, tem a ver com a circunstância de ser tão fácil fazer debate político fora da realidade, sem que ninguém seja controlado, sem que ninguém seja responsabilizado por isso.

Permitam-me que lhes dê um exemplo da minha área, em que tive experiência no governo, dos fundos europeus, e das consequências que isso tem, e termino depois com isso, até porque o Carlos já me está aqui a massacrar, quase. Devem ter ouvido, muitas vezes, o Dr. António Costa – aliás, na sequência do que já dizia relativamente ao programa anterior de fundos, o QREN – dizer que os fundos europeus, em Portugal, estavam atrasados quando ele chegou ao governo. Primeiro era o QREN que estava atrasado, que era o programa de fundos europeus anterior, agora é o Portugal 2020 que estaria atrasado, quando ele chegou ao governo.

Isto não tem a mínima adesão à realidade, e era muito fácil qualquer pessoa confirmar isso. Basta fazer a comparação desses dados de execução com o histórico em Portugal ou fazer a comparação com os outros Estados membros. E esses dados são públicos, podem ser obtidos ou podem ser solicitados à Comissão Europeia.

Deixem-me que vos diga os dois pontos que talvez mais fundamentalmente comprovam isso. Primeiro, no quadro anterior, no QREN, no período correspondente ao primeiro ano de execução do que é agora o Portugal 2020, e em que estava até um governo socialista em funções, nessa altura, a execução do QREN foi de 1,9%. No ano passado, no período correspondente do novo programa de fundos, do Portugal 2020, a execução foi de 4,5%, mais do dobro. Portanto, se compararmos o início da execução deste novo quadro, com o início da execução do quadro anterior, quando estava um governo socialista em funções, a execução de fundos foi mais do dobro. Como é que se podia estar atrasado quando é mais do dobro do que aconteceu no histórico passado?

Segundo lugar. Os dados da Comissão Europeia demonstram que em dezembro de 2015, portanto, um mês depois de o nosso governo ter deixado funções, a execução do novo quadro financeiro de fundos europeus, entre todos os Estados membros, demonstrava que o Estado-Membro da União Europeia com maior execução de fundos era Portugal. Ou seja, como é que o Estado que era o primeiro Estado da União Europeia em execução de fundos do novo quadro pode estar atrasado?

Podemos comparar ou historicamente com o quadro anterior, em que ainda por cima era um governo socialista que estava em funções, ou com todos os outros Estados-Membros, e Portugal ou era o dobro face ao anterior ou é primeiro entre todos os Estados-Membros. Mais, não se viram até um artigo recente, por exemplo do Expresso, que dizia que mais de 40% dos incentivos às empresas, previstos no novo quadro de fundos europeus que vai, potencialmente, até 2022 (que é 2020 mais dois anos), mais de 40% já estavam atribuídos. Mas se mais de 40% já estão atribuídos, como é que pode existir um atraso? Os atrasos neste momento já não são porque os fundos não foram atribuídos… nós já tínhamos aberto concursos no valor superior a oito mil milhões de euros, quando saímos do governo.

Portanto, se há atrasos neste momento, já não tem a ver com a atribuição de fundos, tem a ver com uma de duas coisas. Primeiro: ou as empresas, apesar de terem sido escolhidas, terem sido selecionados os seus projetos nos concursos de fundos europeus, decidiram não começar a executar já, ou não executar de todo esses projetos – e isso tem a ver com quê? Com a perda de confiança dos empresários na nossa economia. Ou, segundo aspeto, já não tem a ver com o aspeto do funcionamento dos fundos do anterior governo, tem a ver com um aspeto do novo governo, que é: podem estar a existir atrasos no pagamento das faturas pelas autoridades que atualmente gerem os fundos.

E isso eu não me surpreenderia, porque, por exemplo, um dos aspetos que o atual governo já mudou, é algo que vai desacelerar a chegada do dinheiro às empresas. Nós tínhamos passado a fazer os pagamentos dos fundos europeus diretamente através da agência, que demorava quarenta e oito horas. E tínhamos eliminado o papel de caixa dos chamados organismos intermédios, que são os serviços públicos como o IAPMEI, que recebe o dinheiro da agência e depois dá às empresas. Qual é o problema disto? É que, frequentemente, estas entidades públicas depois demoram a dar às empresas porque têm problemas orçamentais próprios. E, portanto, gerem aquele dinheiro para a caixa para despesas correntes, por exemplo, se houver constrangimentos orçamentais – e é possível que isso esteja a ocorrer – e vão atrasar com a chegada do dinheiro à economia. Ora, esta eliminação da regra que nós tínhamos criado, pode estar a atrasar - não digo que esteja, não sei, não tenho conhecimento, embora tenha ouvido empresários a dizer que há atrasos muito superiores no pagamento por parte dessas entidades, face ao que existia quando o nosso governo estava em funções. E isso é que pode estar a fazer atrasar a chegada do dinheiro às empresas.

Mas só um ponto ulterior, e concluo mesmo, que é: o que me preocupa também, o que é demonstrativo também, dos nossos problemas em termos de cultura política, é que o foco todo em matéria de fundos europeus, em execução, é errado. Historicamente, ao longo das décadas em que nós tivemos fundos da União Europeia, o nosso problema não foi um problema de execução. Umas vezes melhores, outras vezes piores, mas globalmente nós fomos dos melhores países a executar todos os fundos que nos eram atribuídos.

O nosso problema é um problema de qualidade de execução. De garantir que esses fundos servem para apoiar projetos que são realmente projetos transformadores da nossa economia e da nossa sociedade. E nós, de novo, ao falarmos só da execução, ao falarmos só da quantidade do que gastamos, estamos a ignorar esse aspeto que é fundamental, que é a qualidade das nossas políticas públicas, a qualidade dos incentivos que geram, a qualidade dos projetos que depois vão ou não apoiar, porque é isso que vai garantir, realmente, a melhoria das condições de competitividade da nossa economia, e é isso que pode garantir uma transformação do nosso país, que permita, como eu dizia, realmente responder com sucesso a este grande desafio que nós temos, que é um desafio estrutural de desigualdade e de pouca mobilidade social, num contexto internacional em que essa desigualdade e essa pouca mobilidade social se têm, infelizmente, vindo a agravar.

Muito obrigado.

[Aplausos]

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado, Prof. Poiares Maduro. Partimos então para a ronda de questões; e a primeira, Maria de Melo, do Grupo Castanho.

 
Maria Pereira de Melo

Desde já, boa tarde a todos. Gostaria de saudar a Mesa, em especial o nosso orador, e em nome do Grupo Castanho perguntar o seguinte: como é que nós, juventude social-democrata, podemos ter um papel mais ativo a reforçar o poder local, isto no sentido de melhorar a qualidade da nossa democracia, como tinha dito. Obrigada.

 
Miguel Poiares Maduro

Eu vou fazer uma coisa muito de política tradicional, paradoxalmente, que é utilizar a vossa pergunta para também introduzir algo que eu já tinha pensado dizer e não tive oportunidade de dizer. Mas ao mesmo tempo respondendo genuinamente à vossa pergunta.

O principal conselho que eu diria, desde logo, o primeiro é participem, participem fortemente politicamente. Um dos grandes problemas da nossa democracia, hoje, é a fraca e a pouca participação política. E é muito simples: se vocês não participarem, se a grande maioria das pessoas não participar, os poucos que participam, dominam. E uma democracia dominada por poucos não é uma democracia genuína.

Portanto, o primeiro conselho e o primeiro incentivo que eu vos diria é: participem politicamente, exprimam as vossas opiniões, candidatem-se.

Depois, segundo conselho que eu vos diria: procurem fazer política de acordo com aquilo que são estes princípios que eu mencionei da social-democracia. Desde logo, um princípio fundamentalmente ideológico que tem a ver com a promoção e a valorização da igualdade e da liberdade, entendidas não como em contraposição, mas sim, pelo contrário, como unidas relativamente a um mesmo fim. E em segundo lugar, com uma prática política que, por um lado, seja assente no tal realismo. Isto pode parecer – vir dizer, façam prática política realista –, pode parecer pouco sexy politicamente, eu sei. Mas isto não tem nada a ver com abandonar o idealismo. A nossa ação política deve ser alimentada pelos nossos desejos, mas as alternativas e as propostas políticas que propusermos têm de ser assentes no que podemos fazer. Portanto, nós temos que ter as duas coisas. É importante desejar, é importante sonhar, é importante ter ideais. Mas é importante perceber que tentar promover esses ideais fora da realidade, só nos vai tornar ou demagogos, ou, no pior dos casos, se quiserem, como vimos historicamente, é aquilo que conduz ao autoritarismo, é aquilo que conduz à tirania, frequentemente.

E último ponto – e é aqui que eu vou introduzir um bocadinho algo que eu já tinha pensado dizer -, libertem-se de alguns vícios que infelizmente têm alimentado alguma da nossa cultura política, tradicionalmente. E dou-vos um ou dois exemplos, se quiserem. O primeiro tem a ver com a circunstância de ser importante valorizar, mas também reconhecer, qual é o lugar exato e as fronteiras da política.

Não saber reconhecer qual é o papel da política, versus o papel da economia, versus o papel dos media , versus o papel da técnica, está por trás de alguns dos piores aspetos do funcionamento do nosso Estado, da nossa economia, da nossa sociedade. Tem a ver com uma excessiva proximidade entre poder político e poder económico, que é clássica na nossa prática política e no funcionamento da nossa sociedade, e por vezes, também, com uma excessiva proximidade entre o poder político e o poder mediático. Com uma falta de valorização e respeito pela autonomia e independência técnicas.

Eu dou-vos dois exemplos muito breves. Não sei se leram um artigo do Expresso – acho que era do Expresso desta semana – que falava de todo um projeto, de todo um programa de intervenção do atual governo, para reconfigurar o sistema financeiro, antecipando uma reorganização dos principais acionistas e proprietários daquele banco ou do outro banco.

Lembram-se quando o Dr. Pedro Passos Coelho criticou a circunstância de o Dr. António Costa ter – e isso não foi desmentido – reunido com um acionista de um importante banco, para promover que um determinado negócio privado tivesse lugar, para garantir eventualmente uma certa solução para um banco, e não outra. Isso foi muito criticado. E o que para mim foi interessante, foi ver a forma como a crítica era apresentada, que era: então, mas o governo não deve intervir para assegurar a estabilidade do sistema financeiro? Eu direi: claro que deve intervir.

Mas a questão que nós, como país, e na conceção do nosso sistema político devemos pensar é qual é a forma correta de intervenção de um governo, relativamente ao sistema financeiro. Será que nós achamos que essa forma de intervenção deve ser no sentido – ainda por cima, de forma não transparente – de favorecer certos negócios ou certos agentes económicos, em vez de outros?

E reparem: eu não estou aqui a fazer nenhuma acusação, sequer, de algo mais oculto ou de uma finalidade perversa. Seguramente que muitas das pessoas que defenderam que isto é natural, e que defendem hoje, que é natural um governo intervir desta forma, acham genuinamente que é positivo um governo intervir desta forma. Se o governo puder garantir que um banco, no qual parece existirem alguns problemas acionistas, que isso estabiliza, garantindo que um determinado acionista vai comprar aquele banco e outro vai comprar outro banco, isso parece, imediatamente e intuitivamente, interessante.

Portanto, não estou a colocar em causa que as intenções podem ser boas, nem sequer que, em certos casos, no imediato, isso até pode não ter um efeito positivo. O problema é que, no médio e longo prazo, essa forma de intervenção gera uma cultura de proximidade muito próxima da promiscuidade, e uma dependência mútua entre o sistema político e o sistema económico, que é muito mais prejudicial do que as eventuais vantagens imediatas que possam ser criadas. E é dessa forma que nós temos de pensar naquilo que é aceitável ou não no sistema político. É no impacto estrutural que vai ter no nosso Estado.

Porque foi essa cultura política que levou aos problemas todos que hoje conhecemos de BES, PT, e tudo isso. E nós queremos voltar a repetir o mesmo, esperando ter resultados diferentes? O Einstein dizia que a definição de insanidade é continuar a fazer sempre o mesmo, esperando ter resultados diferentes. Parece, às vezes, que é isso que se pretende e que é esse o caminho que vamos trilhar.

Essa cultura de proximidade, essa cultura de dependência mútua, essa cultura de intervencionismo, dessa forma, de uma forma não transparente, aquilo que gera é conflitos de interesse, e aquilo que premeia na sociedade é quem conhece quem e não quem tem mais mérito.

E sejamos muito claros: se um governo pede um favor, até com a melhor das intenções, a um acionista privado, a um empresário, num dia, na semana seguinte esse empresário vai estar à porta do governo, se necessitar, a pedir um favor em troca. É essa cultura de ação política que nós queremos promover? Do meu ponto de vista, não é!

Portanto, e já não vou dar o segundo exemplo, só dou o primeiro.

Terceiro conselho que eu vos dou – ou quarto, neste caso –, não ajudem a contribuir para mudar esta forma de fazer política, esta perceção de qual é a forma correta de fazer política. Isto custa, porque, como vos disse, intuitivamente, as pessoas pensam: se nós podemos, imediatamente, até resolver um problema, porque é que não o havemos de fazer desta forma? Nunca pensamos nas consequências seguintes, que é criar a tal prática de dependência mútua entre o sistema económico e o sistema político, que foi das coisas mais prejudiciais para o nosso país nas últimas décadas.

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. Rodrigo Mendes, Grupo Encarnado.

 
Rodrigo Azevedo Mendes

Boa tarde. Primeiro, gostaria de agradecer ao professor pela palestra.

Gostaria, em nome do Grupo Encarnado, de fazer uma pergunta sobre um tema que já foi abordado, que é a emergência dos partidos populistas na Europa. Como já disse, hoje em dia estamos a assistir à emergência de cada vez mais partidos de extrema radical na Europa, tanto de esquerda, como o Syriza , o Podemos ou, cá em Portugal, o BE; como de direita, o AFD.

Portanto, gostaria de lhe perguntar o que é que a social-democracia e os partidos social-democratas europeus podem fazer para se reafirmarem e para diminuírem ou travarem a adesão a estes partidos radicais?

 
Miguel Poiares Maduro

Aquilo que nós devemos fazer é dar resposta, do meu ponto de vista, a construir um projeto político que responda ao desafio de reconfiguração do contrato social que as nossas sociedades hoje enfrentam.

Como eu vos disse, nós hoje temos, quer por via da globalização, quer por via do impacto desta nova economia, um desafio muito grande em termos de garantia de condições de igualdade de oportunidades e de mobilidade social nas nossas sociedades. O desafio principal que nós vamos ter no futuro, e aqui não estou a falar só de Portugal, estou a falar a nível global, não é um desafio de progresso económico, é sobretudo um desafio de justiça social na partilha desse progresso económico e do progresso daquilo que resulta das novas tecnologias, por exemplo, desta nova economia e de todas as oportunidades que a globalização também oferece.

A resposta, do meu ponto de vista, não pode estar num regresso ao nacionalismo, em isolar-nos. Eu costumo dizer: não é que o mundo tenha de ser interdependente. Nós podemos tentar, de novo, regressar a viver de forma totalmente independente, se quiserem. Mas isso é um bocadinho – eu dou sempre esse exemplo – como alguém que é deixado no meio do deserto, sem ninguém, nenhuma vivalma próxima, sem ninguém que lhe possa impor fisicamente nada, e essa pessoa, no meio do deserto, dizer: sou finalmente livre para fazer e ser o que sempre quis. Isso não faz grande sentido estando sozinho no meio do deserto. Porquê? Porque nós realizamo-nos em relação com os outros. É um aspeto fundamental da natureza humana, somos seres sociais, realizamo-nos na relação com os outros.

E hoje em dia, no mundo que temos, a nossa realização passa imenso por essa interdependência, por aquilo que nos oferece, também, o mundo globalizado. Portanto, abdicar da globalização, regressar ao nacionalismo é uma falsa resposta. A nossa qualidade de vida iria piorar em muitos aspetos.

Portanto, hoje o desafio que nós temos, e que a social-democracia tem de ter e assumir como projeto, e aqui, como digo, estou a falar não apenas a nível de Portugal, mas a nível global, é aquele de ser quem oferece esta nova reconfiguração do contrato social em que as nossas sociedades assentam, mas uma reconfiguração que seja aberta a um mundo global, e que tenha lugar num contexto de discurso, debate e prática política racional, com a tal adesão à realidade que eu já falei várias vezes.

E essa é a grande visão que nós estamos a ter hoje. É que eu acho, precisamente, que aquilo a que nós estamos a assistir é que este que é o grande desafio que existe hoje em dia a nível global, está a traduzir-se também numa reconfiguração das linhas de visão ideológicas e político-partidárias.

De um lado, temos aqueles que promovem uma política sem adesão à realidade, uma política que cavalga as pulsões nacionalistas. E temos quem faz isso, já o disse, do lado da direita e quem faz isso do lado da esquerda. E com grande preocupação minha, porque estes partidos populistas, estes partidos de caráter nacionalista perverso até há muito pouco tempo não eram partidos de poder. Hoje em dia eles já estão no poder – dei exemplos disso. Sejam partidos de direita, seja de esquerda, já estão no poder. E, noutros casos, não estão no poder, mas estão já muito próximos do poder – o Podemos , por exemplo, em Espanha.

Aquilo que me preocupa também, embora, devo dizer, é uma oportunidade para o PSD, é a circunstância de em Portugal um partido como o Partido Socialista, que é um partido classicamente defensor de uma democracia e de uma sociedade abertas, e não populista, um partido de matriz não populista, estar hoje deslocado – no contexto desta reconfiguração, desta nova divisão da política -, estar hoje próximo, aliado com partidos de caráter claramente populista e que cavalgam essas pulsões nacionalistas perversas.

Mas do ponto de vista do PSD, como vos dizia, é uma oportunidade. Porque significa que nós podemos ser o partido que assume claramente a defesa dessa democracia, que é uma democracia que promove uma sociedade aberta ao mundo, e uma democracia e uma prática política que rejeitam claramente e frontalmente o populismo. E esse é o lugar do centro político, que é o lugar que corresponde também à nossa história política – moderada, reformadora, aberta ao mundo. E é isso que eu acho que nós temos que tornar cada vez mais claro.

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. Joana Lima, Grupo Rosa.

 
Joana Tocha Lima

Boa tarde. Tal como disse, há quem diga que o PSD começou a perder desde há quatro anos a sua identidade política e que só a política do atual governo pode ser capaz de figurar no espectro do tradicional quadro da social-democracia.

Falar de Estado Social é falar necessariamente falar de social-democracia?

Obrigada.

 
Miguel Poiares Maduro

Eu não acho que o PSD tenha perdido a sua identidade política. Pelo contrário. Eu sei que – aliás eu disse isso – essa é uma narrativa política que por vezes é alimentada. Mas, pelo contrário, eu acho que o PSD conseguiu, num contexto extraordinariamente difícil, preservar o fundamental dessa identidade política. E isso manifesta-se em dois pontos.

É verdade que, infelizmente, enquanto governo, tivemos de adotar políticas que exigiram sacrifícios muito fortes aos portugueses. Não porque as desejávamos, mas porque elas eram infelizmente necessárias, devido às circunstâncias em que o país se encontrou. Mas aquilo que demonstra que não perdemos essa identidade política é aqueles resultados, em matéria de evolução de desigualdade, que vos demonstrei. Ou seja, que mesmo num contexto de enormes sacrifícios, paradoxalmente, e ao contrário do que é até a tradição estrutural em Portugal, a desigualdade não se agravou.

Isso demonstra que as políticas adotadas tinham uma preocupação, em termos do seu desenho, de procurar mitigar o seu impacto naqueles que menos tinham. É verdade que pessoas, incluindo pessoas com rendimentos baixos e sobretudo classe média, tiveram de fazer sacrifícios fortíssimos. Mas a repartição desses sacrifícios, podendo nós sempre discutir se, num ponto ou noutro, poderia ser melhor – e poderia sempre ser melhor nalguns pontos. À medida que vamos desenvolvendo políticas é que vamos vendo, também, aquilo em que podemos ir melhorando essas políticas. Essa é uma boa prática política. Ir medindo os resultados, avaliando, e melhorando essas políticas. Mas, no fundamental, os resultados em matéria do impacto na desigualdade comprovam que essa preocupação social existia.

E em segundo lugar, essa prática política manifestou a tal adesão a uma preocupação com a realidade, que é aquilo que mais garante que são os cidadãos que estão no centro da ação política. Porque, como vos disse, o problema fundamental de uma prática política que não tem adesão à realidade, ou de um discurso político que é feito, elaborado, defendido fora dos parâmetros da realidade, é que ele acaba por nunca depois poder oferecer soluções verdadeiras aos cidadãos. E portanto, aquilo que está a fazer é instrumentalizar esses cidadãos e a retórica sobre os cidadãos, para efeitos de ganhos políticos.

Quem faz uma política reconhecendo os constrangimentos que a realidade nos impõe, é quem mais respeita os cidadãos, quem mais está a colocar as pessoas no centro da ação política. E o PSD teve essa preocupação. E teve, por último, também, uma preocupação grande que é própria da tradição política do PSD, reformista. Foi um dos períodos em que mais reformas se fizeram em Portugal.

Aliás, curiosamente, também aí, durante muito tempo na narrativa, disse-se que poucas reformas tinham sido feitas. Mas como é que poucas reformas foram feitas se, hoje em dia, tantas são revertidas. Estão a reverter o quê? Já repararam nisso, nessa contradição?

Portanto, essa preocupação reformista esteve presente, também, ao longo destes anos.

Segundo aspeto. É verdade que mais reformas continuam a ser necessárias e são importantes. Mas também é verdade que há um determinado conjunto de reformas que é difícil de fazer com certos constrangimentos financeiros e económicos. Há reformas que eu acho extraordinariamente importantes para melhorar a qualidade das políticas públicas, que têm a ver, por exemplo, com a qualificação da administração pública, que exigem que o Estado tenha meios financeiros que num período de ajustamento e de austeridade não tem.

Há reformas, por exemplo, que têm a ver com a simplificação, por exemplo, eliminação de certos licenciamentos, que sabem porque é que são muito difíceis de fazer em períodos de grande dificuldade financeira? Porque alguns dos licenciamentos e alguns dos obstáculos burocráticos que existem no país, têm a ver, e hoje em dia explicam-se, pela necessidade, num contexto de constrangimentos financeiros, que os serviços têm de obter receitas próprias. Portanto, por vezes, há obstáculos burocráticos que são sobretudo dirigidos à necessidade que cada serviço público tem de conseguir receitas próprias para combater as dificuldades financeiras que enfrenta.

Portanto, há um outro conjunto de reformas que, seguramente, num programa social-democrata, têm de ser empreendidas, e seriam empreendidas à medida que o país, tal como estava a acontecer, saísse da crise económica e financeira em que se encontrava

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. João Vieira, Grupo Verde.

 
João Vieira

Boa tarde. A nossa pergunta é: acha que Sá Carneiro se identificava com os atuais ideais do partido?

Obrigado.

 
Miguel Poiares Maduro

É uma pergunta semelhante à anterior. Por isso, desta vez vou ser breve, para grande satisfação do Carlos Coelho. Espero não estar a prometer e depois não conseguir…

Acho que sim, pelas razões que vos disse. Aquilo que eu vos procurei dizer é que, do meu ponto de vista, há três grandes aspetos de identidade social-democrata, quer da ideologia social-democrática, quer do PPD/PSD, tal como ele foi concebido por Sá Carneiro. Essa preocupação com a valorização da igualdade e liberdade, em relação íntima entre as duas; uma preocupação com uma prática política que reconhecesse a realidade, se ajustasse à realidade, portanto que fosse reformista, não revolucionária; fosse verdadeira para os cidadãos, não demagógica. E, por último, uma conceção da democracia como apostando na qualidade dessa democracia, nos mecanismos que qualifiquem essa democracia.

E eu acho que esses três vetores, pelas razões que eu disse, continuam hoje bem presentes no PSD.

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. João Pedro Luís, Grupo Cinzento.

 
João Pedro Luís

Muito boa tarde a todos. Gostaria desde já de saudar a Mesa, em especial o nosso convidado, o Prof. Dr. Miguel Poiares Maduro, e todos os colegas presentes.

A questão do grupo cinzento é a seguinte: na sua opinião, face ao crescente desinteresse dos jovens em relação à causa pública, qual deve ser a forma de os políticos conseguirem cativar a população mais jovem?

E também outra questão: como é que é possível que os jovens consigam interiorizar melhor o que é ser social-democrata nos dias de hoje?

Muito obrigado.

 
Miguel Poiares Maduro

Uma das formas de promover e cativar os jovens, é esta. É verdade. É esta iniciativa. E, já agora, isto permite-me dar aqui os parabéns, congratular o Carlos Coelho, que é a alma desta iniciativa. E necessitamos de mais iniciativas como esta.

Mas é importante também que a vossa participação na política não fique por estes dias. Que isto seja apenas uma semente que vos estimule a continuar essa participação. E para isso acontecer têm de estar preparados para uma coisa: quem quer estar na política, vocês vão ter desilusões, vão ter frustrações. Eu costumo dizer que estar na política, exercer política é um estado permanente de frustração, com momentos ocasionais de enorme euforia, quando conseguimos realizar alguma coisa.

E vocês têm de estar preparados para lidar com isso, também. Mas eu diria que, quando nós somos mais jovens, ainda mais capacidade temos de o fazer.

Do ponto de vista das lideranças políticas, para além da organização de iniciativas como esta, nós temos de falar com realismo mas também com um sentido de diálogo, com um projeto de futuro para os jovens. E quando eu digo que o grande desafio que nós temos, hoje em dia, é esse de reconstruir os pressupostos do contrato social – reparem que a minha avaliação, e eu faço-a honestamente, faço-a até mais como académico, que voltei a ser, do que como político. A minha avaliação é de que nós estamos hoje, realmente, num momento histórico que só tem paralelo com aquilo que aconteceu depois da Revolução Industrial.

Isso significa que nós temos, enquanto sociedade, de conseguir reinventar as condições que garantem a sustentabilidade e a preservação e a paz social dessa sociedade, que é o contrato social. Digamos que é o acordo básico na nossa sociedade para podermos viver em conjunto. E é isso que nós somos chamados hoje a reconstruir. E somos chamados a reconstruir isso num contexto global extraordinariamente diferente, quer em função, como disse, da globalização, quer em função desta nova economia do digital, da inovação, da inteligência artificial, que cria o tal paralelo com a Revolução industrial que ocorreu.

Eu diria que a extensão deste desafio, e tornar clara a natureza deste desafio, é talvez aquilo que mais pode apelar aos jovens para os envolver na política. Perceberem a profundidade e a extensão do desafio que nós, socialmente, hoje, enfrentamos, é aquilo que pode ser a maior motivação para participar politicamente.

Mas, como disse, para que essa participação política seja efetiva, para que a política seja efetiva, não apenas temos de melhorar a nossa cultura política, ou seja, a nossa prática da política, mas temos também de alargar, cada vez mais, a participação política. E isso, eu voltaria a repetir, é uma preocupação muito grande que eu tenho, e por isso é que eu valorizo muito uma iniciativa como a Universidade de Verão, e acho notável o que o Carlos Coelho tem feito a esse nível, e todos os outros que têm participado, e a JSD que tem estado sempre tão proximamente envolvida com isso.

Porque para a política poder funcionar e para a política poder ser o instrumento da democracia, a participação tem de ser diversa, a participação tem de ser ampla. E isso compete a cada um de vocês, também, motivar todos os outros jovens que vocês conhecem para participarem politicamente. Uma política com participação limitada é uma política que é capturada apenas por alguns. Vocês não podem deixar que isso aconteça e é sobretudo a vós que compete evitar que isso aconteça.

 
Simão Ribeiro

Muito bem. Nem eu diria melhor.

[Risos]

 
Miguel Poiares Maduro

É o maior elogio que eu podia ter.

 
Simão Ribeiro

Sem dúvida. Mas não acontece sempre.

António Cruz, Grupo Bege.

 
António Cruz

Muito boa tarde a todos. A pergunta que o grupo bege lhe gostaria de endereçar vinha no seguimento do facto de a direita e a esquerda serem conceitos cada vez menos caros e elucidativos. Assim sendo, na sua opinião, existem ainda políticos, hoje, que se aguentem numa posição coerente, do ponto de vista da filosofia e da ideologia de matriz e de raiz inicial do que é ser de direita e de esquerda?

Muito obrigado.

 
Miguel Poiares Maduro

O Carlos está a lembrar, e muito bem, que isso me levaria a revisitar o debate que eu tive com o Rui Tavares. E se se lembram, a minha posição nesse debate, e não foi uma posição que eu assumi para efeitos de debate, é uma posição genuína que eu já defendo há vários anos, é que a divisão tradicional entre direita e esquerda já não faz sentido.

Isto não quer dizer que classificações políticas não sejam úteis, são. São referenciais, é um bocadinho como um mapa. Um mapa nunca é uma reflexão perfeita da realidade, mas é uma escala que nos dá pontos de referência. E as classificações dão-nos esses pontos de referência.

O problema, do meu ponto de vista, é que a classificação tradicional que é feita de direita e a classificação tradicional que é feita de esquerda, já não dão pontos úteis de referência. Porquê? Porque elas confundem mais do que iluminam. Uma das razões é porque parte da divisão é considerar que direita é mercado, esquerda é Estado, e eu já vos disse porque é que acho que essa divisão é uma divisão falsa. E Estado e mercado não é uma questão ideológica, não devia ser uma questão ideológica, já vos expliquei porquê.

Outra, é porque hoje em dia, frequentemente, as diferenças dentro daquilo que é o espaço político de direita ou as diferenças dentro daquilo que é o espaço político de esquerda, frequentemente são maiores do que diferenças entre alguma pessoas que estão na direita e algumas pessoas que estão na esquerda. E quando assim é, isso devia-nos dizer que, afinal, já não é uma classificação útil, porque a diversidade interna ao grupo já é maior entre aquela de pessoas que são classificadas num grupo ou noutro grupo.

Isto lembra-me também um exemplo interessante de quando eu vim cá a esse debate das dificuldades de fazer política hoje. Eu quando estive nesse debate, um dos aspetos que eu defendia era, precisamente, que a diferença esquerda/direita não fazia sentido. E um dos exemplos que eu dava era… por um lado citava alguns autores de esquerda que, por exemplo, dizem hoje que o liberalismo é que é a verdadeira doutrina de esquerda, e, por outro lado, dizia que um governo tradicionalmente qualificado como de centro-direita, como o nosso, tinha adotado medidas muito progressivas em termos de redistribuição dos rendimentos, no desenho das medidas de austeridade. Nessa altura ainda não existiam estes dados que comprovam isso mesmo, mas havia um estudo internacional que demonstrava que em todos os países que tinham adotado medidas de austeridade, que tinham feito programas de ajustamento, as medidas portuguesas eram aquelas que tinham penalizado mais quem tinha mais dinheiro e tinham procurado proteger as classes sociais com menos. Esse estudo internacional defendia isso.

Curiosamente, enquanto eu estava aqui, uma hora depois saía uma notícia na rádio – reparem: a tese que estava a defender, e eu estava a defender isto, para dizer que esquerda e direita não faziam sentido – sai uma notícia na rádio que diz: Poiares Maduro defende que o governo português é o governo mais à esquerda da Europa. A jornalista – acho que era uma jornalista – tinha feito a leitura de dizer: como o Poiares Maduro está a dizer que o governo adotou medidas com forte caráter progressivo, e ela, a jornalista, identifica isso com esquerda, ele estava a dizer que era o governo mais à esquerda. Quando eu estava a utilizar isso para dizer que um governo que era tradicionalmente qualificado como não sendo de esquerda adotava medidas fortemente progressivas e, portanto, a classificação tradicional esquerda/direita não fazia sentido.

O que foi extraordinário é que, entre procurar comunicar com a rádio, porque havia um lead , e confrontarem depois com as declarações que eu realmente tinha feito, demorou quatro horas. Durante essas quatro horas esteve o lead que eu tinha dito que eu era o governo mais à esquerda da Europa.

Isso significou que durante a semana seguinte eu fui massacrado, quer por comentaristas políticas de direita – ou que se auto qualificavam de direita –, como é que eu tinha vergonha de ser um governo de centro-direita; ou de esquerda, como é que eu me arrogava a dizer que era um governo de esquerda.

Quando o objetivo da explicação que eu dava era exatamente o contrário. Mas digamos que a classificação esquerda/direita estava tão forte na mente da jornalista, que a jornalista – a meu ver sem má vontade – alterou o total sentido das palavras que eu tinha utilizado.

Mas eu estou a dar este exemplo para demonstrar a dificuldade que é. Porquê? Porque daquela comunicação que eu fiz, aquilo que se discutiu ao longo de uma semana, foi uma coisa que eu não disse. E ainda hoje em dia, se vocês forem para a internet, ainda hão de estar lá as declarações com alguns a dizerem… ainda há pessoas daqui a uns anos vão dizer: tu uma vez até disseste que o teu governo era o mais à esquerda… Reparem, isto diz muito da dificuldade. Que isto é uma dificuldade também para os jornalistas, porque, como eu disse, não creio que tivesse havido qualquer má-fé da jornalista. Mas demonstra bem a dificuldade do funcionamento da política, hoje em dia, num ciclo imediato, mas é ao mesmo tempo tão imediato e tão permanente.

Por um lado, há uma leitura política imediata, e como é tão imediata, pode ser equívoca, pode ser errada. Mas depois fica lá, fica na internet, para sempre, e torna-se permanente. E depois há uma discussão sobre algo que, na realidade, não aconteceu, não foi dito. E isto é uma das grandes dificuldades que nós enfrentamos hoje.

 
Simão Ribeiro

Diana Camões, Grupo Roxo.

 
Diana Camões

"Saber estar e romper a tempo, correr os riscos da adesão e da renúncia, pôr a sinceridade das posições acima dos jogos pessoais, isso é a política que vale a pena.” – Francisco Sá Carneiro

Não citei aqui o nome de Francisco Sá Carneiro à toa, pois é sempre importante relembrar quem ele foi. Para além de ter sido um dos fundadores do PPD/PSD, foi acima de tudo um político notável e um estadista que contribuiu bastante para a História da nossa democracia.

A frase que eu citei aqui vai também ao encontro da pergunta que eu vou fazer. Atualmente temos assistido, cada vez mais, a um afastamento das pessoas em geral em relação à política. Isso deve-se em parte, também, ao comportamento dos nossos políticos. Como é que nós podemos pedir à sociedade portuguesa que acredite na atividade política quando muitos dos nossos governantes ignoram por completo todos os princípios éticos que devem estar no topo da pirâmide do pensamento político?

Para além disso, tendo em conta que os princípios da social-democracia, como o Doutor Miguel Poiares Maduro mencionou – liberdade, igualdade e solidariedade – são intemporais, não considera que seria necessário fomentar um debate público e profundo acerca destes princípios fundamentais para conseguir atrair o cidadão comum, não só para a social-democracia, mas também para a política em geral?

Muito obrigado, e desde já quero também agradecer pela aula fantástica que nos forneceu aqui hoje.

 
Miguel Poiares Maduro

Muito obrigado.

Essa perda de confiança nos políticos, na classe política, nas instituições políticas, é um dos fenómenos a que estamos a assistir hoje em dia, na Europa desde logo, e em Portugal também. Tem havido uma perda crescente da confiança que os cidadãos têm nas instituições políticas, reflexo da perda de confiança na própria classe política.

Eu acho que isso tem razões que são razões de caráter social. Há uma predisposição mais forte das pessoas ao populismo e há uma predisposição mais forte das pessoas… uma frustração com a política que resulta da insegurança económica e social que hoje existe. Que é uma insegurança física, até, porque tem a ver com o terrorismo também, que é uma insegurança económica, devido aos desafios que a globalização traz, devido aos desafios que a nova economia traz, e que eu já tive oportunidade de mencionar.

Portanto, estruturalmente isto alimenta o receio, e o receio alimenta, se quiserem, a irracionalidade. Vocês conhecem a Guerra das Estrelas, seguramente, Star Wars. Há um grande filósofo na Guerra das Estrelas, que é o Obi-Wan Kenobi. Costumo dizer que é um dos grandes filósofos da história contemporânea. E o Obi-Wan Kenobi diz, na Guerra das Estrelas, ao jovem que mais tarde acaba por se transformar no Darth Vader, ele diz quendo ele é jovem, e preocupado com ele, fala-lhe sobre o receio, precisamente, e diz que o medo gera incerteza, a incerteza gera insegurança, a insegurança gera raiva e a raiva é o caminho para o mal.

Esta mensagem filosófica, na realidade, reflete todo o conjunto de filmes da épica… é uma espécie de uma epopeia contemporânea, uma obra épica contemporânea, a Guerra das Estrelas. E se vocês repararem, num dos últimos episódios, há um momento em que a democracia, a República que existia, é substituída pela ditadura. E esse é o momento em que a insegurança e o medo é mais forte. É o reflexo precisamente, se quiserem, dessa frase que o Obi-Wan Kenobi tinha dito. Ou seja… até há uma parte fantástica que é uma imagem em que o imperador, que era o Chanceler, está a subir e está a ser aplaudido por todos. Porquê? Porque ele assume o poder da autoridade devido aos receios que toda a população sentia, que as diferentes partes da República sentiam, o medo levou a que aceitassem a ditadura. E a princesa Leia diz, nesse momento: "então é assim que a democracia acaba, através de um estrondoso aplauso.”

Eu estou a dizer isto porquê? Porque aquilo que me preocupa profundamente, sem querer ser catastrofista, é que hoje em dia nós estamos a assistir de novo a uma conjugação extraordinariamente perigosa, entre uma sociedade dominada pelo medo e pelo receio, e uma prática política em que o populismo é cada mais crescente. E o outro período da história em que nós tivemos isso na Europa foi precisamente o período que levou ao aparecimento do nacional-socialismo, do nazismo. Eu não estou a dizer que nós vamos ter uma situação desse tipo. Mas estou a chamar a atenção para essa coincidência. E lembrem-se que o nacional-socialismo chegou ao poder por via democrática, tal como na Guerra das Estrelas, através de um estrondoso aplauso.

O que me preocupa, portanto, é que haja um conjunto de políticos – e é isso que nós temos de combater – que, em vez de combaterem o medo, se alimentem do medo e desse receio. E essa é a diferença. Aquilo que define os populistas, por aquilo que eu vos disse, através da tal não adesão, tendo como ponto de partida não aderindo à realidade, é a circunstância de que eles não oferecem soluções, de facto. A única coisa que eles fazem é identificarem-se com o medo e os receios das pessoas. E com base nisso, identificam culpados.

E uma coisa que me preocupa em Portugal, e na narrativa da atual coligação, é que ela é, sobretudo… se vocês repararem, não há qualquer justificação apresentada para o falhanço da recuperação económica que tinham anunciado. Tinham anunciado que a recuperação económica que estava a ocorrer era muito frágil, que tinha de ser reforçada, tinha de ser aumentada.

E em vez de assistirmos a uma explicação disso, em vez de assistirmos, ou ao anúncio de alguma outra política alternativa que iria ser desenvolvida para nos trazer, de novo, o regresso à convergência económica, o que é que nos oferecem? Culpados. O que é que nos vêm dizer? Sim, nós partilhamos da vossa dor, mas os culpados estão ali. Mas nós estamos aqui convosco, a identificar os culpados, a berrar contra os culpados, a bater pé aos culpados. Soluções? Nenhuma.

Isto é populismo, não é política. Política é vir dizer às pessoas: isto é difícil, isto é complicado, é complexo, não vai ser fácil. Mas aqui estão algumas alternativas, que ainda difíceis, nos vão, pouco a pouco, permitir sair da situação em que nos encontramos. E isso corresponde à ética política de Sá Carneiro que está expressa nessa frase que citou.

 
Simão Ribeiro

Obrigado. Luís Antunes, Grupo Azul.

 
Luis Alcaide Antunes

Muito boa tarde. Doutor Poiares Maduro, desde já muito obrigado pela fantástica aula que nos proporcionou aqui hoje.

Começo por referir uma frase que achei bastante interessante quando se referiu a democracia. Uma democracia com promoção da igualdade de oportunidades. Oportunidades essas que não são iguais em todos os municípios ao longo de Portugal. Oportunidades essas que fazem grandes diferenças em todos os municípios onde vivemos hoje em dia.

Eu sou de um município que é Mira, conhece muito bem, certamente. Obviamente que as nossas oportunidades são totalmente diferentes das oportunidades de um município que seja do sul, do norte ou do interior. A mesma coisa acontece com esses municípios. Falo obviamente de uma descentralização, até de uma desconcentração, mas descentralização de competências. Há cerca de um ano e meio, no congresso da Associação Nacional de Municípios, referiu que esta descentralização de competências é uma prioridade inadiável.

Eu pergunto: esta prioridade inadiável, como acha que devemos olhar, fazer, face a esta prioridade, a esta desconcentração, descentralização, melhor dizendo, de competências, de que falava, e às diferenças de igualdade que existem nos diversos municípios que temos em Portugal.

Obrigado.

 
Miguel Poiares Maduro

Obrigado. E permita-me dizer que é um gosto muito particular responder a alguém de Mira. Este livro e esta carta era dirigida, precisamente, ao Presidente de Câmara de Mira, que era o meu pai. Foi o primeiro Presidente de Câmara de Mira eleito democraticamente.

E, já agora, permitam-me que diga que é também com grande felicidade que vejo que, nos últimos anos, Mira voltou a ter um excelente Presidente de Câmara. Acho que realmente o PSD tem de ter orgulho no candidato que elegeu e na pessoa que atualmente desempenha as funções de Presidente de Câmara em Mira. É alguém, como outros autarcas, que valoriza o poder local em Portugal e que demonstra a importância que o poder local pode ter no nosso país. Aliás, o poder local tem sido, por vezes, injustamente criticado. É verdade que ocorreram muitos erros em matéria de gestão do poder local, no passado. Mas é igualmente verdade, senão mais verdade, que o poder local contribuiu, como talvez poucos poderes e poucos atores políticos em Portugal, para a melhoria da qualidade de vida das populações em Portugal.

E demonstrou, nos últimos anos, uma capacidade de ajustamento às boas práticas de governo que, nalguns aspetos, a administração central ainda não conseguiu demonstrar da mesma forma. Não é pela administração local que o país tem hoje défice orçamental. A administração local tem hoje excedentes orçamentais, reduziu fortemente o seu endividamento, mas continua, ao mesmo tempo, também, a trabalhar para o bem-estar das populações e a redefinir o seu papel.

O que é importantíssimo é que o poder local, cada vez mais, deve estar menos centrado na chamada obra física, nas infraestruturas, nos equipamentos, domínios em que Portugal, hoje em dia, já está, em muitos aspetos, até acima da média europeia. E cada vez mais concentrado naquilo que podíamos designar do software, e no investimento, no desenvolvimento e na inclusão social nas autarquias, nos municípios, e no desenvolvimento, na promoção da competitividade económica desses municípios em relação com os recursos endógenos de cada um desses municípios, de cada uma das parcelas do nosso território.

E é a essa luz, também, que nós devemos pensar em atribuir novas competências aos municípios. Eu acho que – e era algo que, por acaso, eu não cheguei a abordar, mas tinha previsto na minha intervenção inicial – que uma das reformas mais importantes que nós temos de fazer, para responder aos desafios que temos, é uma reorganização de competências, que nalguns domínios pode passar até por transferir certas competências, por exemplo, algumas das competências no domínio fiscal, para responder aos desafios que mencionei nessa matéria, para níveis supranacionais. Mas ao nosso nível interno, em muitos domínios, também, descentralizar. Descentralizar para os municípios ou para as comunidades intermunicipais.

Porquê? Porque a descentralização, em muitos domínios, traduz-se, por um lado, em melhor e mais informação sobre a matéria que tem de ser tratada, que tem de ser resolvida. Quem está mais próximo, frequentemente, tem mais e melhor informação, pode responder mais rapidamente e de forma mais adequada. Em segundo lugar, porque essa proximidade, que a descentralização traz, frequentemente permite também, um melhor ajustamento, adequação das políticas, às diferentes realidades do território. Por exemplo, parte da oferta das escolas não deve ser exatamente a mesma, pode depender da realidade económica e social de cada um dos territórios em que essas escolas se inserem.

Em terceiro lugar, porque essa proximidade se traduz em maior responsabilidade, também. Uma responsabilização política mais imediata. É mais fácil aos cidadãos, se o teto de uma escola não está a funcionar, pedir uma responsabilização, uma resposta imediata ao Presidente de Câmara, do que ir à 5 de Outubro , ou aos serviços do Ministério da Educação.

E em quarto lugar, porque a descentralização, muitas vezes, permite também outra coisa, que é experimentação. Que é através da inovação, da capacidade de iniciativa, dos diferentes autarcas ou das populações desses municípios, desenvolver respostas inovadoras, diferentes, para um determinado problema social. Testá-las nesse município, e se elas funcionarem bem, depois então alargá-las ao resto do país, alargar essas soluções a outros municípios.

É por isso que eu acho que a descentralização – concordo consigo – é extraordinariamente importante. E, na realidade, nós iniciámo-la, no governo anterior. Fizemo-lo em matéria de educação, demos os primeiros passos, também, em matéria de saúde, social e cultura. Um dos aspetos que eu gostava de saber é… nós iniciámo-la de forma progressiva. Como eu costumo dizer, citando o Martin Luther King, em vez de estarmos sempre a falar da reforma, da descentralização global do país como a reforma mais importante de todas, mas depois, em concreto, não se faz nada, começamos a fazer projetos-piloto de descentralização.

Porque, já agora permitam-me que diga, um dos problemas da famosa reforma do Estado, em Portugal, tem a ver, por um lado, com a dificuldade de ter compromissos e consensos estruturais no país, e a dificuldade de conseguir esses compromissos e consensos tem muito a ver, lá está, com o facto de a política se fazer frequentemente, ou poder ser feita, de forma impune, fora dos parâmetros da realidade. Portanto, isso leva a que o debate político, muitas vezes, seja puramente demagógico, retórico, sem qualquer adesão.

E aí é muito fácil falar da reforma do Estado. Eu costumo brincar e dizer que, em Portugal, a reforma do Estado está para o nosso discurso e comentário políticos um bocadinho como a paz no mundo está para os concursos das misses universo. Fica sempre bem dizer, falar da reforma do Estado, mas nunca se concretiza em concreto o que se quer dizer com isso, nem ninguém sabe muito bem a que é que se estão a referir.

E é por isso que nós, citando Martin Luther King, em vez de olharmos apenas para o cimo das escadas, começamos a subir os degraus. E desde logo em matéria de educação, mas como disse também cultura, social, iniciámos um conjunto de projetos-piloto de descentralização, que era suposto serem avaliados, para depois poderem ser alargados. Onde é que está a sua avaliação? Eu gostava de saber. Até para, nalguns aspetos, que se calhar não funcionaram bem, poderem ser melhorados. Mas para um governo que tem falado tanto de descentralização, para um primeiro-ministro que disse que era a reforma das reformas, de descentralização a única coisa que se ouviu de novo é retórica. Para além de uma questão que tem a ver com a eleição dos presidentes das CCDRs pelos presidentes de Câmaras, que aliás é contrária à prática política que fez quando esteve no governo antes e que está a fazer agora, também.

E já agora, que tem muito que se lhe diga, porque as CCDRs não tem apenas a ver com os interesses das câmaras, e pode haver aí uma questão complicada em matéria de gestão de fundos, porque os municípios são um, mas não o único, dos interessados na distribuição de fundos. E se são apenas eles que passam a eleger os presidentes das CCDRs, há aí um problema potencial.

Isso seguramente não é descentralização. Descentralização é transferir competências, com meios, como nós estávamos a fazer. Através de projetos-piloto, mas estávamos a fazer. Eu acho que, o que era importante… e lá está, de novo tem a ver com a tal importância de uma política ancorada na realidade, para ter compromissos estruturais e, com isso, ter estabilidade de políticas públicas. Nós só temos verdadeiras reformas se tivermos estabilidade de políticas públicas, nalguns domínios. E aí a avaliação dessas políticas públicas é fundamental. Eu gostava que essa avaliação fosse feita, para vermos o que é que, se calhar, podíamos generalizar já, em matéria desses projetos-piloto de descentralização, e o que é que poderíamos ter de alterar, ou até, decidir que afinal ali era melhor não descentralizar. Era fundamental fazer isso.

 
Simão Ribeiro

Grupo Amarelo, Filipe Veiga.

 
Filipe Veiga

Muito boa tarde. A nossa pergunta é a seguinte: se tivesse de escrever um livro sobre as bases ideológicas do PSD de hoje, o conteúdo desse livro seria muito diferente daquele que leu no livro de Bernstein que nos apresentou?

 
Miguel Poiares Maduro

Como tive oportunidade de dizer, aquilo que, se quiserem, é a influência filosófica, de raiz kantiana – perdoem-me agora aqui a natureza muito académica talvez do discurso -, e de natureza metodológica, que é a tal ideia de atender à realidade, e que para mim são os aspetos que mais determinam a social-democracia, tal como Bernstein a elaborou, permanecem, hoje em dia, tão válidos como eram. Mas esses mesmos princípios determinam uma diferença muito grande entre aquilo que é a finalidade da social-democracia, que é a ideia de garantir a todo e qualquer indivíduo, as oportunidades e os meios para procurar desenhar, desenvolver, implementar o seu projeto de vida pessoal, a diferença entre isso e os instrumentos para o conseguir, é extraordinariamente importante.

A finalidade é a mesma, permanece a mesma, mas a própria social-democracia, pela tal constante adaptação à realidade, configura a importância de nós irmos, à medida que o contexto económico e social, à medida que a realidade vai mudando, os instrumentos, os meios, as formas através das quais atingimos essa finalidade, vão mudando.

Portanto, se nos pressupostos fundamentais, eu continuaria, se tivesse de escrever um livro, a seguir o Bernstein, há outros aspetos sobre a forma, sobre os meios, em que mudaria, como seguramente se calhar, muito provavelmente, o próprio Bernstein, se escrevesse hoje, também mudaria.

 
Simão Ribeiro

Vítor Nascimento, Grupo Laranja.

 
Vitor Nascimento

Boa tarde. Miguel, numa das primeiras formações que fiz, assim que cheguei à JSD, perguntaram-nos numa escala de dez a menos dez, onde colocaríamos o PSD no espectro político. O PSD encaixa sensivelmente entre o menos três e o seis, mais número menos número, também não vamos muito por aí.

Temos nas nossas fileiras várias correntes de pensamento, desde os mais liberais, aos puros sociais-democratas, aos mais socialistas. Lembro também aos presentes, alguns não se lembram ou podem não saber, que não foi assim há tanto tempo que Sá Carneiro fez o pedido da filiação à Internacional Socialista. Parece-me, do meu fraco conhecimento, também, que o PSD sempre se foi adaptando ideologicamente, para corresponder aos desafios que os tempos foram apresentando, claramente essa adaptação tem sido uma mais-valia para o PSD.

No entanto, faço duas pequenas perguntas. Conseguirá o PSD vencer o teste do tempo, quando existem grandes diferenças ideológicas entre os militantes? E até que ponto a adaptação é um risco para alienar limitantes ativos, ou mesmo os possíveis novos militantes, ou até mesmo ser um ponto de ataque da nossa oposição por não sermos coerentes ao longo do tempo?

Obrigado.

 
Miguel Poiares Maduro

Por boa parte das razões que já mencionei, eu acho que há uma identidade política de fundo do PSD, que vem desde as origens do próprio projeto político da social-democracia, como o Bernstein o desenvolveu, e que se exprime quer nos programas, quer no programa original quer no programa atual, do nosso partido, quer na sua prática política.

E acho que esses aspetos de identidade que eu mencionei, são comuns, são partilhados por todos, e é aquilo que mais nos define. É uma preocupação com a igualdade e liberdade, e com a reconciliação desses dois valores, e é uma prática política de um certo tipo. Uma prática política não populista, com adesão à realidade e que defende uma sociedade aberta. E por isso, o que eu também procurei demonstrar foi que, aquilo que às vezes são apesentadas como contraposições ou oposições, são falsas oposições. E deve ser mais tratado como um debate quase técnico, do que um debate de uma verdadeira divergência ideológica.

Há uma piada de alguém que perde um relógio num passeio e depois é encontrado a procurar esse relógio no passeio oposto. E perguntam-lhe: mas tu não perdeste o relógio daquele lado? Porque é que estás a procurar o relógio neste passeio e não no passeio que é do outro lado? E ele responde: porque este passeio tem iluminação e aquele não.

[Risos]

No debate político, infelizmente, nós, muitas vezes, estamos a discutir coisas que não são aquelas que verdadeiramente interessam, nem são as divisões provavelmente ideológicas mais relevantes, mas apenas e só porque se tornou hábito discutir essas coisas. Portanto, por vezes estamos a fazer falsas discussões, em vez de fazer as discussões que verdadeiramente importam.

E depois há outra coisa. Como a manipulação das palavras é poderosíssima e contamina todo o discurso. Já tive oportunidade de dizer… quando se diz que há uns mais liberais e outros menos liberais, eu perguntaria: o que se quer dizer com liberal nessa circunstância? Porque uma das coisas mais comuns que se diz é: o PSD ainda tem alguns sociais-democratas genuínos – por exemplo, aqui o Carlos Coelho, toda a gente diria - e depois tem uns liberais. Mas o Bernstein disse, por exemplo, que a social-democracia era a herdeira legítima do liberalismo. Depende do que se quer…

É porque muitas vezes, quando se fala de liberalismo, está-se a pensar em quem defende políticas de laissez-faire , mercado só. Não é seguramente esse o meu entendimento de liberalismo. O meu entendimento de liberalismo é que a ação política, incluindo a promoção da igualdade, deve estar dirigida, não à imposição de um modelo comum de vida a todas as pessoas, mas sim à salvaguarda e à proteção de que cada um possa desenvolver o seu modelo individual de vida. E, nesse sentido, o liberalismo não está em contraposição com a social-democracia. Está na base da social-democracia, como o próprio Bernstein diz.

E, nesse sentido, como eu também procurei dizer, a divisão mercado e Estado, para mim, é uma falsa divisão. São instrumentos. Por vezes aquilo que se atribui ao Estado, na realidade, o Estado acaba é por não prosseguir esse fim e prosseguir o fim contrário. E vice-versa relativamente ao mercado.

Portanto, eu acho que, na realidade, mesmo os debates que temos dentro do PSD, são debates que, no entanto, são reconduzíveis a preocupações fundamentais comuns entre todos nós. E é isso que faz com que tenha sentido que estejamos no mesmo partido. Não é estranho que existam diferenças no PSD, nem é estranho que existam diferentes soluções e diferentes perceções de qual é a melhor forma de prosseguir um objetivo ou outro objetivo, ou de atingir um determinado objetivo social, de finalidade social, ou um bem social.

É normal, porque nós temos desde logo uma avaliação da realidade distinta. Agora, o que é fundamental é que a nossa finalidade última é a mesma, a nossa preocupação social é comum.

E segundo, é que, mesmo dentro da nossa divisão da realidade, dentro da nossa divisão que tenhamos, nós partimos de uma preocupação de apurar o que existe na realidade.

E depois, segundo aspeto que eu acho que tem de ser fundamental, e que tem de continuar a ser a base, é a tal preocupação com uma prática política distinta. E aí nós temos de contribuir e fazer cada vez mais para mudar a prática política que tenhamos. Como disse, eu tive oportunidade de dizer a importância que há de mudar, de saber qual é o lugar e as fronteiras da política, para não contribuirmos, como infelizmente vejo na prática política do atual governo e da atual coligação, para o regresso, para o reforço, da política sem fronteiras claras entre a política e a economia, entre a política e outros domínios.

E da mesma forma, procurando criar as condições, desde logo a tal adesão à realidade, a valorização e o respeito da independência técnica. Foi algo que eu ainda não tive a oportunidade de falar, mas também tinha previsto aqui. Dar-vos como exemplo, porque eu acho que é um dos aspetos que dificulta a que a nossa política seja produtiva, dificulta a concretização de compromissos em Portugal, dificulta a existência de estabilidade nas políticas públicas, é o facto de nós não valorizarmos suficientemente o reconhecimento da independência e da autonomia técnica.

Eu dou-vos um exemplo nessa matéria, que também tem a ver com a prática política atual, e que me parece importante. E que, já agora, decorre dos fundos europeus, também. E de um dos tais aspetos de substância que é fundamental prestar atenção nos fundos europeus. Não só a quantidade – quanto é que se gasta -, mas como se gasta, e isso inclui o modelo de governação dos fundos, como é que eles são geridos.

Uma das diferenças no novo programa do Portugal 2020, que eu, com o Dr. Castro Almeida, o Secretário de Estado do Desenvolvimento Regional, e com todo o governo, desenhámos, e que é uma diferença muito importante face ao passado dos fundos europeus, foi a atribuição de uma autonomia forte às autoridades de gestão. E isso tem a ver precisamente com a tal noção diferente, e promoção de uma cultura política diferente.

Porquê? A nossa leitura é que a função de um governo nessa matéria deve ser a de estabelecer as prioridades políticas públicas e dar orientações estratégicas. Mas não deve ser o governo nem a abrir concursos públicos nem a selecionar os projetos. Porquê? Porque se é o governo que faz estas segundas tarefas, o risco é que essa abertura de concursos e a seleção de projetos passe a ser instrumentalizada por objetivos político-partidários.

O risco é que os governos, ou o sistema político, através das pressões políticas, das pulsões políticas imediatas, respondam a interesses político-partidários e a interesses políticos imediatos, e não às próprias orientações estratégicas que podem ser definidas e as prioridades estruturais de que o país necessita.

E foi por isso que nós entendemos que era muito importante definir essa linha estratégica e conferir verdadeira autonomia e independência técnica às autoridades de gestão dos fundos. Devo dizer que me preocupa muito ver que o atual governo, também aí, está a fazer uma regressão que, do meu ponto de vista, é extraordinariamente grave, e que é um exemplo péssimo dessa cultura política.

Não sei se lembram do caso que envolveu e que levou à demissão do presidente da CCDR Norte, do Prof. Emídio Gomes. De acordo com aquilo que eu li nos jornais – vivendo fora, li isso nos jornais e não tinha outra informação privilegiada, mas não vi desmentido, pelo contrário, vi implicitamente confirmado -, a demissão do Dr. Emídio Gomes terá sido pelo facto de ele não ter cumprido uma ordem direta que lhe foi dada para abrir um concurso, de forma a atribuir certo financiamento a algumas autarquias, até com instruções já sobre o resultado desse concurso que ia ser aberto. Isto é gravíssimo, do meu ponto de vista. É gravíssimo porque é uma violação – a ser verdade – da lei, tal como ela existe. Que eu saiba, ela não foi alterada. E é gravíssimo também porque demonstra a tal conceção de uma cultura política em que os fundos podem, de novo, passar a ser instrumentalizados por razões político-partidárias, e não pelos interesses estruturais necessários. É o risco disso.

Eu diria que, infelizmente, só numa cultura política pouco desenvolvida é que um comportamento destes leva à demissão do presidente da CCDR e não à demissão do ministro.

[Aplausos]

Portanto, eu acho que é na defesa deste tipo de uma política que se oponha a este tipo de cultura política que também tem de estar a nossa identidade política. Eu acho que, seguramente, existem diferenças, divergências dentro do PSD, mas como a nossa finalidade é a mesma, mas como quero acreditar, e acredito, que globalmente todos partilhamos e todos temos de partilhar desta forma diferente de fazer política, que no fundamental o PSD continua com uma identidade política fiel à social-democracia e continua com uma identidade política forte de todos os seus membros.

Muito obrigado.

[Aplausos]

 
Dep.Carlos Coelho

Eu vou pedir ao Simão Ribeiro e à Margarida Balseiro Lopes que acompanhem o nosso convidado à saída, eu depois irei lá fora para dar um abraço de despedida, mas tenho que ficar aqui dentro para uma coisa que vos queria dizer. E peço aos conselheiros que acompanham o Nuno Matias nos procedimentos seguintes que venham aqui para a Mesa.

Enquanto esperamos que sejam reunidas as condições na sala, vocês vão, à saída, no momento em que vão depositar o "Aprendi que…” e a "Avaliação do tema”, vão recolher um impresso que tem a ver com a visita a Castelo de Vide. Esse impresso visa que nós possamos apurar qual é a quantidade de participantes que querem fazer a visita para dar indicação à Câmara, ou seja, para efeitos de organização, do número de guias, etc. Não há nenhuma obrigação de fazerem a visita. Eu recomendo que façam a visita, que é rápida, demora uma hora. É uma visita a pé. Subimos até ao castelo. Portanto, quem estiver a pensar em calçados mais elegantes, estou a pensar sobretudo nas senhoras, esqueçam. É melhor calçados mais práticos.

Eu próprio farei a visita e vários membros da organização, embora já conheçamos a maior parte do trajeto, mas há sempre qualquer coisa de novo para aprender. É interessante, e portanto recomendo que façam. Mas, repito, não é obrigatório, é completamente voluntário, só vai quem quer e quem não quer não vai. Mas para nós apurarmos o número de pessoas agradecia que preenchessem esse papel.

Esse papel pode ser preenchido durante todo o dia, durante a noite, até depois de vocês organizarem os vossos trabalhos de grupo. Pode ser entregue aos vossos conselheiros ou pode ser depositado amanhã de manhã, aqui quando chegarem para a aula da manhã com o Eng.º Carlos Moedas. É só isto, não tem outra razão de ser, mas agradecia que respondessem, que é para nós termos a ideia se estamos a falar de dez, se estamos a falar de cinquenta, se estamos a falar de cem. Isso é determinante para que a Câmara possa organizar a logística da visita.

Relativamente à apresentação de trabalhos de grupo de amanhã, há alguma dúvida?

Muito bem, fantástico.